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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Comentário ao Evangelho – III Domingo do Tempo Comum

Comentário ao Evangelho – III Domingo do Tempo Comum – Ano B – Mc 1, 14-20
Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: 15 “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” 16 E, passando à beira do Mar da Galileia, Jesus viu Simão e André, seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores. 17 Jesus lhes disse: “Segui-Me e Eu farei de vós pescadores de homens”. 18 E eles, deixando imediatamente as redes, seguiram a Jesus. 19 Caminhando mais um pouco, viu também Tiago e João, filhos de Zebedeu. Estavam na barca, consertando as redes; 20 e logo os chamou. Eles deixaram seu pai Zebedeu na barca com os empregados, e partiram, seguindo Jesus (Mc 1, 14-20).
Não se deve dar tempo ao tempo, mas sim à eternidade
O chamado à conversão e o anúncio do Reino nos colocam na perspectiva de um “tempo abreviado” que deve ser vivido em função da eternidade.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
I – Viver no tempo sob a perspectiva da eternidade
A comunicação de Deus com o homem — em particular nos episódios mais salientes narrados na Escritura Sagrada — é o ponto central a partir do qual se desenrola a História. Como seria desejável assistir a todas as maravilhas da ação divina ao longo dos séculos, do grande mirante da eternidade, que só abandonaríamos no curto período entre nosso nascimento e o instante da morte! No entanto, dado que vivemos dentro do tempo, isto não é possível. Mas também fazemos parte da História, e tudo o que veio antes de nós, assim como o presente e o futuro, tem íntima relação conosco. Como, então, nos associarmos aos passos de Deus em todas as épocas?
A Liturgia permite reviver a História da salvação
Eis a maravilha da Liturgia! Com efeito, ela nos faz participar não só dos acontecimentos celebrados, mas, inclusive, das mesmas graças concedidas em cada um deles, conforme afirma o Papa Pio XII na Encíclica Mediator Dei: “O Ano Litúrgico, que a piedade da Igreja alimenta e acompanha, não é uma fria e inerte representação de fatos que pertencem ao passado, ou uma simples e nua evocação da realidade de outros tempos. É, antes, o próprio Cristo, que vive sempre na sua Igreja e que prossegue o caminho de imensa misericórdia por Ele iniciado, piedosamente, nesta vida mortal, quando passou fazendo o bem (cf. At 10, 38) com o fim de pôr as almas humanas em contato com os seus mistérios e fazê-las viver por eles, mistérios que estão perenemente presentes e operantes, não de modo incerto e nebuloso”.1
Há um mês e meio abriu-se o novo Ciclo Litúrgico com o período do Advento, que revive ao longo de quatro semanas — dedicadas à penitência e ao pedido de perdão por nossas faltas — a espera da humanidade pela chegada do Messias. Vinculamo-nos, assim, aos milênios que se seguiram desde a saída de Adão e Eva do Paraíso até o nascimento do Redentor. Exultando de alegria pela certeza de que uma mudança se verificaria e as coisas tomariam outra perspectiva, acolhemos Jesus na noite de Natal, O visitamos com os pastores e os Reis Magos, fugimos com Ele para o Egito, e O encontramos no Templo, separado de Nossa Senhora e de São José. Mais tarde assistimos ao seu Batismo, cuja comemoração encerra as festas e introduz o Tempo Comum, em que contemplaremos ao longo dos meses o começo da vida pública de Nosso Senhor, os milagres por Ele realizados, a indignação dos fariseus por perceberem a difusão de uma doutrina nova dotada de potência (cf. Mc 1, 27), diferente de tudo quanto ensinavam, bem como a insegurança e a inveja que os leva a querer matar o Filho de Deus.

Tempo Comum significa tempo de luta, de esforço no cumprimento do dever, de abnegação, de arrancar as nossas vaidades, medidas fundamentais para a formação do caráter. Não é por acaso que neste 3º Domingo ouvimos o Divino Mestre declarar: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo”.
Que tempo é este? Qual é o tempo que estamos vivendo? Avançam sem interrupção os ponteiros do relógio, sucedem-se os segundos, os minutos vão se escoando. A nossa vida se pauta pela expectativa dos instantes posteriores e do dia de amanhã... Que mensagem nos traz esta Liturgia ao falar da criatura tempo, enquanto nos convida a entrar no Reino de Deus?
A pregação de Jonas
Na primeira leitura (Jn 3, 1-5.10) Deus incumbe o profeta Jonas, pela segunda vez, de pregar em Nínive, missão que, como lemos em capítulos precedentes, ele aceita de má vontade. Convicto de que seus habitantes não iriam se converter, quiçá ele tenha pensado que as admoestações ao menos serviriam de elemento para condená-los, e por isso partiu com ímpeto de destruição, tanto mais que os ninivitas se contavam então entre os adversários dos judeus. Como era uma cidade entregue aos vícios e de conceitos religiosos desviados, predizer o seu castigo acabava sendo um deleite para Jonas. Grande era a extensão de Nínive, a ponto de serem necessários três dias para ser percorrida, mas o profeta não poupou esforços em proclamar: “Ainda quarenta dias, e Nínive será destruída” (Jn 3, 4).
Ora, o rei e o povo levaram a sério sua palavra: “acreditaram em Deus; aceitaram fazer jejum, e vestiram sacos, desde o superior ao inferior” (Jn 3, 5). Por que agiram assim? Porque o Senhor lhes mostrou o seu caminho, e a sua verdade os orientou e conduziu, como reza o Salmo Responsorial (Sl 24, 4a.5a) da Liturgia de hoje. Desta forma eles adquiriram uma noção clara do rumo a ser seguido, e corresponderam à graça, atraindo a benevolência do Céu: “Vendo Deus as suas obras de conversão e que os ninivitas se afastavam do mau caminho, compadeceu-Se e suspendeu o mal que tinha ameaçado fazer-lhes, e não o fez” (Jn 3, 10). Neste domingo a Igreja deseja que, a exemplo dos ninivitas, também nós atendamos à voz de Jesus que nos exorta: “Convertei-vos e crede no Evangelho!”.
II – O Solene anúncio do Reino: “Convertei-vos!”
14 Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: 15 “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!”
Vinha o Divino Mestre exercendo seu ministério de modo discreto, em concomitância com os derradeiros meses da pregação do Precursor. De acordo com o relato do Evangelista São João — objeto da consideração da Liturgia do anterior domingo (cf. Jo 1, 35-42) —, nesse período Cristo encontrou aqueles que posteriormente passariam a integrar o número dos Doze, ao ser por Ele chamados de maneira definitiva, como refere São Marcos nos próximos versículos.
A notícia da prisão de São João Batista constituiu o sinal esperado por Jesus de que chegara a hora determinada pelo Pai para dar início à sua vida pública, abrir as comportas da graça e acentuar o tom de sua voz, predispondo as almas para seu apostolado. “Uma vez entregue João” — comenta São Jerônimo — “logo Ele mesmo começa a pregar. Com a Lei em declínio nasce, em consequência, o Evangelho”.2 Daí em diante nenhuma outra preocupação O detém, a não ser a de cumprir a missão redentora que Lhe fora confiada e mostrar o caminho da salvação. Qual é este caminho?
Em virtude da união hipostática, Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e Homem verdadeiro; há n’Ele uma junção misteriosa entre as duas naturezas, na Pessoa do Verbo, que nossa inteligência jamais compreenderia sem um dom divino: a fé, na Terra, e a visão beatífica, na eternidade. Enquanto Homem, Ele dirá de Si mesmo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Assim, o pedido de Davi, repetido no Salmo Responsorial — “Mostrai-me, ó Senhor, vossos caminhos, vossa verdade me oriente e me conduza!” —, torna-se n’Ele plenamente realizado. Ao formular este anseio faltava ao rei-profeta a ideia exata, como temos hoje, de qual era este Caminho. A nós que O conhecemos, é, pois, indispensável uma conversão.
O chamado à conversão e a perspectiva da eternidade
Converter-se significa mudar de vida, tomar um rumo diferente do que vinha sendo seguido, tal como fizeram os ninivitas ante a pregação de Jonas. Converter-se significa sair de uma situação materialista, naturalista e humana, para assumir uma postura angélica, sobrenatural e divina; esquecer os problemas banais para fixar-se numa perspectiva nova, não mais a do tempo, mas a da eternidade, isto é, a do Reino de Deus. A quem de nós foi revelado o momento da morte? Nem sequer alguém muito jovem sabe se durará longos anos...
Quando recebemos o Batismo, passamos da condição de puras criaturas humanas à de filhos de Deus. No instante em que as águas batismais caíram sobre nossas cabeças, todos os pecados que pudéssemos haver cometido, se fomos batizados depois de adultos, foram perdoados — inclusive os piores crimes — e a nossa alma foi revestida de uma branca túnica. É neste estado que devemos mantê-la durante a vida inteira; e se vier a acontecer que um pedaço desta veste da inocência fique preso numa cerca ou seja ela manchada pela lama, basta um exame de consciência coroado por um pedido de perdão e a absolvição sacramental para que seja restaurada. O importante é conservá-la sempre alva, porque a qualquer hora — até mesmo no dia de hoje! — podemos ser chamados a prestar contas e, sem esta prerrogativa, não seremos aceitos no Reino de Deus. Eis o que a Liturgia recorda com as palavras: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo”.
Assim surge, no 3º Domingo do Tempo Comum, esta criatura de Deus: o tempo. E uma vez que a seus olhos o tempo não existe, porque tudo é presente, enquanto filhos de Deus nós somos convidados a viver em função da eternidade.
III – Um exemplo de mudança de vida
Belo exemplo de conversão nos é oferecido ainda pelo Evangelho, no qual Nosso Senhor vai convocar quatro pescadores — Simão e André, Tiago e João — para mudarem de vida, de trabalho e de situação.
A psicologia do pescador
16 E, passando à beira do Mar da Galileia, Jesus viu Simão e André, seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores.
É curioso observar que a escolha recaiu sobre pescadores. Jesus poderia ter designado sacerdotes, sinedritas, membros das escolas rabínicas — as universidades da época — ou quaisquer outras pessoas de maior projeção e influência. Mas quis pescadores...
Analisemos as características do pescador. Para ser bem sucedido ele precisa ter faro, certo tato, um “sexto sentido” próprio à sua profissão. Ao despertar de manhã, pelo vento, pela atmosfera, pela maresia e o tipo de ondas, sabe se o mar está piscoso e favorável ou se paira uma ameaça de tempestade, podendo ele mesmo vir a correr riscos; quais os pontos onde lançar a rede, e os que têm de ser evitados. Ele sabe que espécie de peixe corresponde a cada estação do ano, quando chegou a temporada da desova e o período em que os peixes sobem, e distingue inclusive os costumes dos mais variados cardumes. Todo este conhecimento acaba lhe constituindo uma segunda natureza.
Ele se dedica à pesca para subsistir e não por puro diletantismo. Mais ainda, cabe ao pescador montar uma empresa, sendo-lhe exigido adequar as artes da pescaria ao relacionamento com a freguesia e, portanto, não apenas entender de pesca, mas estar a par das apetências dos consumidores da cidade. Por isso a sua vida está entre a atividade pesqueira e os interesses humanos, o que lhe proporciona, além da percepção das águas, um atilado senso psicológico. Se for um ótimo pescador, porém um mau negociante, ou o contrário, seu ofício redundará num desastre. Ora, é dentre os pescadores que Cristo elege os seus. Por quê?
A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa
17 Jesus lhes disse: “Segui-Me e Eu farei de vós pescadores de homens”.
Os Apóstolos deveriam, dali em diante, pescar almas, não com o intuito de obter lucro, e sim para entregá-las a Deus. Ele, que “não suprime a natureza mas a aperfeiçoa”,3 derramaria suas graças sobre as qualidades humanas dos discípulos com vistas a aproveitá-las, como ressalta Fillion: “As funções que lhes confiará, depois de tê-los preparado gradualmente, decerto não carecerão de semelhança com o ofício em que até então se haviam exercitado. [...] Nele aprenderam a paciência e o animoso trabalhar”.4 O sobrenatural iria elevar e aprimorar as aptidões e os dons dos pescadores, ocasionando-lhes extraordinárias possibilidades no cumprimento de sua vocação. Não era, pois, o caso de o Divino Mestre estar à procura de outros se, naquele tempo, os pescadores se contavam entre os que possuíam mais senso psicológico, maior contato com a natureza e uma estupenda visão natural da obra da criação. Jesus preferiu estes porque, em suma, eram idealíssimos para dar início à formação do Colégio Apostólico e da Igreja.
Neste episódio reconhecemos uma prova da sabedoria de Deus e de sua bondade previdente: em duas barquinhas minúsculas, singrando um pequeno lago com quatro pescadores, estava o berço da Religião que iria transformar a face da Terra. Sim, “pela rede da santa pregação tiraram os homens do mar profundo da infidelidade, conduzindo-os para a luz da Fé. Esta pesca é muito admirável, porque os peixes quando são colhidos morrem lentamente, enquanto os homens presos pela palavra da pregação são vivificados”,5 afirma São Remígio. Quem teria coragem de dizer aos gregos, aos romanos ou até aos bárbaros da época, que estes pobres trabalhadores triunfariam das civilizações tidas por grandiosas e sobre as suas ruínas iriam construir um império muito superior, a Civilização Cristã, com todas as riquezas e maravilhas estupendas que ela produziria no transcurso dos séculos? Santo Agostinho explica a razão mais elevada deste modo de proceder: “Se Deus houvesse escolhido um homem sábio, talvez esta eleição fosse atribuída à sua sabedoria. Nosso Senhor Jesus Cristo, que queria quebrantar a cerviz dos soberbos, não busca o pescador pelo orador, mas conquista o imperador pelo pescador”.6
Este modo de Jesus agir revela uma característica das vocações suscitadas por Deus: têm um aspecto genérico — a glória d’Ele, a que a totalidade das pessoas é destinada — e outro específico. Cada um é chamado a uma determinada missão, que ninguém desempenhará tão bem quanto ele próprio. E é aquinhoado com qualidades humanas ordenadas ao cumprimento daquele objetivo, para o qual foi especialmente designado por Deus.
A figura usada — “pescadores de homens” —, todavia, é complexa, pois lançar a rede ao mar para pescar é coisa bem diversa de lançá-la numa praça para conquistar almas. Ser pescador de homens não rende dinheiro, enquanto de peixes, sim, sobretudo na sociedade judaica de então, dependente em grande medida da pesca e do pastoreio. Conhecedores da linguagem analógica e parabólica de Jesus, os quatro entenderam perfeitamente o significado mais profundo do que lhes estava sendo dito.
Longa preparação para um reencontro definitivo
18 E eles, deixando imediatamente as redes, seguiram a Jesus. 19 Caminhando mais um pouco, viu também Tiago e João, filhos de Zebedeu. Estavam na barca, consertando as redes; 20 e logo os chamou. Eles deixaram seu pai Zebedeu na barca com os empregados, e partiram, seguindo Jesus.
Sendo o Evangelista sintético por excelência, São Marcos não conta os primeiros contatos de Nosso Senhor com Simão e André, Tiago e João, que antecederam a cena narrada nestes versículos. Encontro de emoção intensa, encontro cujas consequências teriam um alcance extraordinário, uma repercussão incalculável. Embora pareça fortuito, na realidade foi disposto desde toda a eternidade pelo braço onipotente de Deus. É evidente que Jesus não passou apenas dizendo “Segui-Me!”, pois houve um processo psicológico que foi preparando para esta entrega aqueles discípulos que Ele próprio já havia colocado na escola de São João Batista. Trata-se, com efeito, dos mesmos que acompanharam Jesus quando Ele passou pelas margens do Jordão, onde o Precursor estava batizando, como foi contemplado no 2º Domingo do Tempo Comum. Eles acreditavam que Jesus era o Messias prometido, mas não tinham se tornado seus discípulos de forma incondicional e definitiva, conforme ressalta o padre Augustin Berthe: “Depois de terem seguido por algum tempo a este novo Mestre, tinham os quatro pescadores voltado às suas redes na expectativa das grandes coisas que devia operar o Libertador para salvar Israel”.7
Quantas conversas Ele não terá mantido com os quatro — tal como no dia em que se conheceram —, mostrando como a profissão de pescadores era interessante; entretanto, em lugar de contentar-se com ela, precisavam subir, porque mais importante era atrair as almas para Deus, com vistas a reformar a face da Terra. Uma vez maduros, Cristo cruza com eles e, mediante um simples dito, os move a abandonar tudo para servi-Lo e se fixarem no apostolado, unindo-se a Ele para sempre. À semelhança do que vimos na primeira leitura, foram eles assistidos por uma autêntica graça de conversão.
Imaginemos a surpresa do reencontro, seguida de muita alegria, e a solicitude destes homens simples e rudes, mas de coração ardoroso para com o Divino Mestre. Sem dúvida cada um deles Lhe proporcionou, nesta hora, verdadeira felicidade, pois o instinto de sociabilidade de Jesus-Homem — sublime, perfeito, elevadíssimo, totalmente assumido pela divindade — O levou a Se comover ao deparar com aqueles que seriam os seus Apóstolos, os seus filhos. Que “santa inveja” devemos ter deles!
Na ocasião, estes eleitos não eram capazes de avaliar a importância do ocorrido, nem atinar que estavam marcando a História. Porém, se eles houvessem vivido tal episódio após terem recebido tantas graças que lhes seriam derramadas mais adiante, e gozando, em decorrência, de uma altíssima compreensão da Pessoa de Nosso Senhor, qual não teria sido sua adesão de entusiasmo e sua veneração pelo Redentor!
Entrega sem reservas
Naquela época os pescadores constituíam uma camada social que, longe de ser a inferior do povo, equivalia à classe média de nossos dias. Zebedeu, pai de Tiago e João, possuía uma empresa — em sociedade com Simão e André (cf. Lc 5, 10) — e já havia reunido certo pecúlio, o que se conclui do fato de ter empregados para auxiliá-lo. Por conseguinte, renunciar a esta posição, deixando o pai e as redes, era penoso; seguir Jesus não era empreender uma carreira com sucesso garantido; pelo contrário, era lançar-se no escuro, abraçar uma incógnita, porque passariam a viver de esmolas, deslocando-se sem cessar. Ninguém sabia o futuro que os aguardava, tanto mais que Nosso Senhor diria de Si: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu, seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8, 20).
Ora, a docilidade e o desprendimento procedem da caridade. Os Apóstolos fizeram um ato de amor ao Mestre, a partir do qual já não pertencem a si mesmos, mas a Ele: são escravos d’Ele, não têm outro destino a não ser Ele! Para onde vão? Ignoram! Nem sequer perguntam ou pensam nisto! Atitude perfeita, pois Nosso Senhor vinha pregando: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos!”. Um letrado, um doutor da Lei, um fariseu ou escriba pensaria: “Ah, que confiança ingênua!”. Não obstante, cabe-nos dizer: Arrebatador abandono! Que sabedoria a destes quatro! Que felicidade terem dito sim à graça, à vocação, com este ímpeto!
Neste Evangelho, como também na primeira leitura da profecia de Jonas, vemos que “a Palavra de Deus é viva, eficaz” (Hb 4, 12). Ela transforma, converte e santifica! Mais ainda, esta Palavra é salvífica, pois penetra e produz maravilhas, desde que saibamos corresponder a ela e sejamos flexíveis. Contudo, se lhe levantarmos obstáculos não daremos fruto — a menos que Deus, por uma misericórdia especial, nos “derrube do cavalo” como a São Paulo (cf. At 9, 4) —, pois Ele quer a nossa colaboração.
Quais são as nossas “redes”?
Para os discípulos a conversão significou deixar as redes. Quais serão as nossas “redes”? Quando o Filho de Deus nos chama, quando nos toca com uma graça no fundo da alma, como respondemos a este apelo? Em todas as circunstâncias da vida Ele está nos convidando ad maiora. Qual é a nossa reação?
Nossos círculos sociais, determinadas relações de amizade, os afazeres diários, por vezes, nos afastam do verdadeiro objetivo, sugerindo-nos um sonho naturalista e mundano que não considera a eternidade. Caprichos, manias, visualizações erradas, egoísmos, más inclinações precisam ser combatidos e rejeitados imediatamente, porque “o Reino de Deus está próximo”. O exemplo que nos dá o Evangelho nos impele a ascendermos a um patamar diferente. No que consiste ele? A partir do momento em que fomos elevados ao plano da graça pelo Batismo, não podemos mais obedecer aos ditames do mundo, nem ter como motor das nossas ações interesses pessoais, vaidades e orgulho. Devemos viver dos Sacramentos, da oração, de tudo aquilo que nos auxilia no cumprimento de nossa vocação individual e abandonar a “rede” que nos liga às coisas terrenas, porque a nossa existência passou a ser outra! Estamos “angelizados”!
IV – A mensagem paulina: “o tempo está abreviado”
Na segunda leitura (I Cor 7, 29-31) diz São Paulo: “o tempo está abreviado” (I Cor 7, 29). As crianças têm a impressão de que o tempo demora a passar; um mês, é interminável. No entanto, conforme avançamos em idade, um ano parece um esfregar de olhos... Os dias se escoam rápido, e para quem tem experiência da vida tornam-se cada vez mais curtos, consumindo-se em acelerada contagem regressiva. De fato, quando se parte deste mundo o tempo é nada! E por mais que se venha a descobrir uma pílula capaz de prolongar a longevidade humana até 120 ou 240 anos, o que seria isto em comparação com a eternidade?
Por isso prossegue o Apóstolo: vivam “os que choram, como se não chorassem, e os que estão alegres, como se não estivessem alegres; e os que fazem compras, como se não possuíssem coisa alguma; e os que usam do mundo, como se dele não estivessem gozando. Pois a figura deste mundo passa” (I Cor 7, 30-31). Sua intenção, nestes versículos, é mostrar que, havendo motivo, é bom derramarmos lágrimas, estarmos alegres, adquirirmos bens, usarmos das coisas do mundo que, de si, são lícitas; todavia, não depositemos nisto a nossa esperança, nem nos deixemos fascinar a ponto de nos esquecermos de Deus. Chegada a hora da morte o corpo repousará no túmulo e a alma se encontrará diante d’Ele para ser julgada. Então, de que valerá o tempo? Sabemos que “a figura deste mundo passa”. Que proveito terá aquele que caiu em pecado? No fundo, eis a mensagem paulina: “Tudo o que é legítimo pode ser feito, mas que ninguém ponha nisto o seu coração. Pelo contrário, faça como se não existisse e tenha os olhos fixos na eternidade”.
Deixemos tudo para abraçar a santidade
É preciso meditar no dia do Juízo, quando todos os nossos pensamentos virão à tona. Se correspondermos ao convite da Liturgia deste domingo, firmando o propósito de nos unirmos mais ao Salvador e sermos exemplo de bem, de verdade e de virtude para o próximo, esta boa disposição pesará na sentença de cada um de nós.
Certos da bondade do Mestre, roguemos a Ele que nos dê forças para vencer as dificuldades, pois o caminho do Céu não é fácil. Compenetremo-nos de que a cada passo nos cabe procurar ser mais perfeitos e conformar nossas almas com a d’Ele, pelo princípio inerrante de que ou progredimos ou nos tornamos tíbios. Na vida espiritual nunca estamos estagnados: quem não avança, retrocede!
Peçamos, pois, a São Paulo, São Pedro, Santo André, São Tiago e São João que nos obtenham de Nosso Senhor Jesus Cristo a graça que eles receberam: deixar tudo para abraçar a via da santidade, seja ela em família ou numa vocação religiosa, com coragem e cheios de confiança! 
1 PIO XII. Mediator Dei, n.150.
2 SÃO JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.I (1,110,42), c.4, n.3. In: Obras Completas. Comentario a Mateo y otros escritos. Madrid: BAC, 2002, v.II, p.43.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.1, a.8, ad 2.
4 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.2223.
5 SÃO REMÍGIO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Marcum, c.I, v.16-20.
6 SANTO AGOSTINHO. In Ioannis Evangelium. Tractatus VII, n.17. In: Obras. Madrid: BAC, 1955, v.XIII, p.239.
7 BERTHE, CSsR, Augustin. Jesus Cristo, sua vida, sua Paixão, seu triunfo. Einsiedeln: Benziger, 1925, p.114.



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