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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

EVANGELHO II DOMINGO DA QUARESMA – ANO B – Mc 9, 2-10

CONCLUSÃO DOS COMENTÁRIOS AO EVANGELHO II DOMINGO DA QUARESMA – ANO B – Mc 9, 2-10
Estupor face à magnificência da graça recebida
5 Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias” 6 Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo.
A cena foi a tal ponto grandiosa que São Pedro ficou estupefato. E frequente os autores traduzirem o pedido de levantar três tendas como um desejo de prolongar indefinidamente aquela maravilha. Em certo sentido a observação pode ser válida, porém o texto evangélico é claro ao relatar que ele teve medo e não sabia o que dizer. Como era muito comunicativo, viu-se impelido a fazer um comentário. Parece, pois, mais apropriado admitirmos que Pedro estava aturdido porque vira a Palavra, sem conseguir interpretá-La; mas logo vieram do alto as luzes necessárias para isso.
O Pai ama totalmente o Filho
7 Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: Este é o meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!”

Quando amamos determinada criatura, somos atraídos pelo bem que nela existe. Se gostamos, por exemplo, de um panorama, é porque vemos a beleza e o bem nele depositados por Deus. Esta perfeição é anterior ao movimento de nossa vontade, que voa para aquela forma de pulcritude. Entretanto, com Deus se passa o oposto. Seu amor faz com que o bem penetre naquilo que ama, promovendo a bondade dos seres. Ora, essa caridade — que n’Ele é infinita — esgotou-se em seu Filho Unigênito, em quem pôs toda a sua complacência, como dirá outro Evangelista (cf. Mt 17, 5). Deus O amou sobremaneira, porque era seu único Filho.
Nós, meras criaturas, somos amados pelo Criador e rec bemos a infusão de sua bondade, mas nunca correspondemos à altura de seus dons, ou seja, sempre estamos aquém daquilo que deveríamos dar. A despeito disso, Ele ainda nos ama. E quanto mais nos amaria se a nossa restituição fosse maior! Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo contrário, deu absolutamente tudo o que era possível, a cada instante, em retribuição ao Pai, despertando com isto um amor todo especial, razão das palavras: “Este é o meu Filho amado”. Em decorrência desse amor, Jesus é Aquele que resume e reúne em Si tudo o que saiu das mãos divinas. E na Cruz, ao reparar por inteiro a ordem da criação, Ele conquistou, enquanto Homem, o título de Rei, Salvador e Redentor nosso, que já possuía por ser Deus, como recorda São Cirilo de Alexandria: “sendo Deus desde todo o sempre, ascende de nossa limitada condição até a glória excelente da divindade”.5 E assim o Pai Lhe dá todo louvor e honra. Em suma, Ele quis para Cristo os tormentos da Paixão porque desejava elevá-Lo à plenitude da glória.
O sofrimento é algo passageiro
8 E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. 9 Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. 10 Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”.
Segundo São Mateus, os Apóstolos caíram com a face por terra depois de ouvirem a voz do Pai (cf. Mt 17, 6). Qual não teria sido a potência desta voz? Com que ímpeto ela não penetraria até os ossos? Tudo naquela manifestação era feito para que os Apóstolos tomassem o Mestre como um ser divino e adquirissem consciência de que era imperioso ouvi-Lo, mesmo que, logo a seguir, Ele anunciasse que iria morrer e ressuscitar ao terceiro dia. Mas Nosso Senhor queria, sobretudo, mostrar que as penas do Calvário seriam passageiras.
No episódio da Transfiguração Ele deixa claro que, se eliminar o sofrimento é impossível, também é certo que Deus nunca exige algo acima de nossas forças: “Deus qui ponit pondus, supponit manum — Deus que coloca o peso, põe a mão de baixo”, diz o provérbio. A dor existe tanto na via da santidade quanto na do pecado; na primeira é sempre mais suave e, no fim, todo sofrimento bem suportado dá em triunfo, como recorda Santo Afonso Maria de Ligório: “E preciso sofrer; todos temos que sofrer. Todos, sejam justos ou pecadores, hão de levar a cruz. Quem a leva pacientemente se salva, e quem a leva impacientemente se condena. ] Quem se humilha nas tribulações e se resigna com a vontade de Deus é grão do Paraíso, e quem se ensoberbece e se irrita, abandonando a Deus, é palha para o inferno”.6 Tão grande é a glória que nos aguarda na eternidade, no júbilo da visão beatífica, que ela justifica todos os padecimentos que possam nos sobrevir. Nas palavras do Apóstolo: “os sofrimentos da presente vida não têm proporção alguma com a glória futura que nos deve ser manifestada” (Rm 8, 18).
Este Evangelho ajuda-nos a focalizar bem o problema do sofrimento. Quando se abater sobre nós um drama ou um malogro que não entendemos, seja isso para nós causa de regozijo, porque indica que levamos na alma o sinal dos predestinados: “Assim como Deus tratou seu amadíssimo Filho, assim também tratará a quem ame e adote como filho”.7 Dilemas, desilusões, desentendimentos, reveses de saúde, incompreensões familiares, dificuldades financeiras ou desastres são permitidos pela Providência para o nosso bem. Por isso pergunta o mesmo São Paulo, na segunda leitura: “Se Deus é por nós, quem será contra nós? Deus, que não poupou seu próprio Filho, mas O entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com Ele?” (Rm 8, 31b-32). “Tudo” inclui também a dor. Enchamo-nos, pois, de alegria, porque vamos caminhar ao longo desta Quaresma, passo a passo, rumo à Crucifixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Confiantes de que a Providência nunca nos desampara, abandonemo-nos inteiramente em suas mãos — como Abraão e o próprio Homem-Deus —, para que Ela faça de nós o que Lhe aprouver.
III - OFEREÇAMOS EM HOLOCAUSTO AQUILO QUE NOS AFASTA DE DEUS!
À vista do ensinamento desta Liturgia, não podemos nos esquecer de que o amor manifestado pelo Pai por nós na mactatio — imolação — de seu Filho merece reciprocidade. Deus espera de cada um de nós este sacrifício: desapego daquilo que nos desvia do rumo certo, ou de qualquerapreensão que amarre nosso coração a algo que não seja Ele, e docilidade no tocante à sua vontade. Uma vez que nos chamou à santidade, Ele nos quer por inteiro e que estejamos constantemente com o cutelo elevado como Abraão. Se Abraão esteve disposto a entregar Isaac, como não estaremos nós prontos para oferecer aquilo que constitui um obstáculo para a salvação e para nosso relacionamento perfeito com o Senhor? De quanto proveito seria firmarmos um propósito ardoroso de pôr sobre a lenha cada um de nossos caprichos, sobre eles descer a faca e, em seguida, atear-lhes fogo, imolando-os em holocausto a Deus! Desta maneira, como Abraão, nos tornaríamos livres de qualquer apreço desordenado às criaturas.
É comum ouvirmos elogios à fé do santo patriarca, que realmente é digna de todo louvor; mas talvez mais bela ainda seja sua obediência, refletida na do filho Isaac. “A obediência” — afirma Santo Inácio de Loyola — “é um holocausto, no qual o homem inteiro, sem dividir nada de si, se oferece no fogo da caridade a seu Criador e Senhor [...]; é uma resignação inteira de si mesmo, pela qual se despoja todo de si, para ser possuído e governado pela Divina Providência”.8 A obediência praticada com tal radicalidade obtém-nos a realização das promessas, porque Deus assegura a Abraão: “Juro por Mim mesmo — oráculo do Senhor —, uma vez que agiste deste modo e não Me recusas te teu filho único, Eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar. Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos. Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da Terra, porque Me obedeceste” (Gn 22, 16-18). Que consolo seria podermos ouvir a voz de Deus dizendo-nos: “Uma vez que recusaste todos os teus apegos, os queimaste e puseste num altar em sacrifício, Eu te abençoarei, porque tu Me obedeceste”. A obediência é das virtudes que mais agradam a Deus; não aquela que se baseia em exterioridades, mas, sim, a que nasce no fundo do coração, como foi a de Abraão: esta é a obediência autêntica.
Mais uma vez, na segunda leitura, São Paulo nos encoraja a assumirmos essa postura, por termos um intercessor no Céu: “Jesus Cristo, que morreu, mais ainda, que ressuscitou e está à direita de Deus” (Rm 8, 34). Abraão não contava com Nosso Senhor junto ao Pai para pedir por ele, nem sequer Nossa Senhora. Quanto a nós, numa situação muitíssimo superior à do patriarca, temos a intercessão de um Advogado absoluto e de uma Medianeira de impetração onipotente, o que é próprio a nos encher de confiança. Não nos esqueçamos, todavia, que “noblesse oblige — a nobreza obriga”. Dotados de tantos privilégios, devemos corresponder mais do que ele.
No Evangelho, a voz do Pai nos exorta: “Escutai o que Ele diz!”. Lembremo-nos, então, do que Nosso Senhor ensinou: “Se alguém quer vir após Mim, renegue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-Me” (Lc 9, 23). Esta cruz não é pesada, mas, pelo contrário, alivia os pesos de nossa consciência. Ela significa obedecer à vontade de Deus. O 2 Domingo da Quaresma nos estimula a termos diante dos olhos aquilo que alimenta a nossa fé, aumenta a nossa capacidade de sofrer e nos proporciona alegria em meio a todos os tormentos.
1)     Para outros comentários a respeito deste tema, ver: CLA DIAS, EP, João Scognamiglio. Como será a felicidade eterna? In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.74 (Fev, 2008); p.10-17; Comentários ao Evangelho do II Domingo da Quaresma — Anos A e C, respectivamente nos Volumes I e V desta coleção; A Transfiguração do Senhor e nossa santificação. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.8 (Ago 2002); p.5-10; Comentários ao Evangelho da Festa da Transfiguração do Senhor — Anos A, B e C, no Volume VII, também desta coleção.
2)     Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.25, a.3, ad 2.
3)      Cf. Idem, III, q.45, a.2; al, ad 3; q.28, a.2, ad 3.
4)     BOSSUET, Jacques-Bénigne. I Sermon pour le II Dimanche de Carême. In: OEuvres choisies. Versailles: Lebel, 1822, v.VI, p.283.
5)      SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. ¿Por qué Cristo es uno? 2.ed. Madrid: Ciudad Nueva, 1998, p.135.
6)      SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Práctica dei amor a Jesucristo. In: Obras Ascéticas. Madrid: BAC, 1952, t.I, p.365.
7)      Idem, ibidem.

8)      SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Carta 83. A los Padres y Hermanos de Portugal. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1952, p.838.

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