COMENTÁRIOS AO EVANGELHO 10º DOMINGO TEMPO COMUM – ANO B – Mc
3,20-35
Mons João Clá Dias
Naquele tempo, 20 Jesus voltou para casa com seus
discípulos. E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer.
21 Quando souberam disso os parentes de Jesus saíram para agarrá-lo, porque
diziam que estava fora de si. 22 Os mestres da lei, que tinham vindo de
Jerusalém diziam que ele estava possuído por Belzebu, e que pelo príncipe dos
demônios ele expulsava os demônios. 23 Então Jesus os chamou e falou em
parábolas: "Como é que satanás pode expulsar a satanás? 24 Se um reino se
divide contra si mesmo, ele não poderá manter-se. 25 Se uma família se divide
contra si mesma , ela nos poderá manter-se. 26 Assim, se Satanás se levanta
contra si mesmo e se divide, não poderá sobreviver, mas será destruído. 27
Ninguém pode entrar na casa de um homem forte para roubar seus bens, sem antes o amarrar. Só depois poderá saquear
sua casa.28 Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens, tanto os
pecados, como qualquer blasfêmia que tiverem dito. 29 Mas quem blasfemar contra
o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas será culpado de um pecado
eterno."
30 Jesus falou isso, porque diziam: "Ele está
possuído por um espírito mau." 31
Nisso chegaram sua mãe e seus irmãos. Eles ficaram do
lado de fora e mandaram chamá-lo.32 Havia uma multidão sentada ao redor dele.
Então lhe disseram: Tua mãe e teus irmãos estão la fora à tua procura." 33
Ele respondeu: Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos? 34 E olhando para os
que estavam sentados ao seu redor, disse: "Aqui estão minha mãe e meus
irmãos. 35 Quem faz a vontade de Deus,
esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe." (Mc 3,20-35)
A
consanguinidade sobrenatural
Ser parente
do Messias seria, pelos nossos critérios, uma honra igualável. Para o Filho de
Deus, ao contrário, mais importante fazer a vontade do Pai Celeste do que ser
parte de sua genealogia humana.
I - OS SEGREDOS DA VIDA OCULTA DE JESUS
Ao meditarmos nos
mistérios da vida de Nosso Senhor, nossa imaginação é solicitada de modo
especial quando nos detemos nos anos transcorridos no apagamento Nazaré, a
contemplar aqueles caminhos que em tantas ocasiões Ele percorreu; aquele
panorama com o Monte Tabor ao fundo e a planície que avança até o mar, inúmeras
vezes por Ele divisado; aquela casa na qual Ele habitou desde o momento em que
retornou do Egito, tão humilde, porém quão impregnada presença sobrenatural...
Ali Ele viveu numa atmosfera de pobreza e esquecimento, mas de grandeza; de
amor, de paz, de um descanso suave, e ao mesmo tempo de trabalho intenso. Ali Ele
“crescia em estatura, em sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2,
52), sendo preparado por uma ação divina para sua grande missão.
Um véu cobria Jesus aos olhos dos seus
Como se pode explicar
que em Nazaré o Homem-Deus passasse despercebido? Como parentes, vizinhos e
amigos não vislumbraram em Jesus a divindade? Como não viram n’Ele, pelo menos,
o Messias? O plano divino, por uma alta sabedoria, exigia que Nosso Senhor
atravessasse esse longo espaço de trinta anos sem Se distinguir, aos olhos dos
seus, do jovem comum: honrando o trabalho, exaltando a
humildade, dando-nos exemplo em tudo. A Providência queria — além de uma glória
completa para o Filho de Deus Encarnado — conferir maior mérito a Maria
Santíssima e submeter todos aqueles que com Ele conviviam a uma prova: a do esforço
e da delicadeza de atenção para descobrir que em Jesus havia algo de mais
importante em relação a qualquer outro homem. Para isso, lançou Deus um véu sobre
suas qualidades humanas e sobre sua natureza divina.
Houve, sem dúvida, os
que corresponderam a este convite. Se Ele assombrou os próprios doutores no
Templo, aos 12 anos, não causaria admiração nas pessoas que O conheciam? Não é de
se conceber que alguns companheiros de infância, familiares educados com Ele,
ou adultos que privassem com Nossa Senhora e São José, não tivessem descerrado
um tanto esse véu e se tenham dado conta, em algo, de quem era Ele. Para estes
— uns mais e outros menos —, é provável que Jesus deixasse transparecer alguns
reflexos da sua misteriosa divindade, incompreensível à razão humana.
Quão diferente terá
sido para aqueles — decerto a maioria — que por infidelidade sempre
consideraram Jesus como sendo apenas um deles, “o carpinteiro, o filho de
Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão” (Mc 6, 3). Assueta vilescunt...
A natureza humana, infelizmente, habitua-se a tudo e, na rotina, até as coisas
mais extraordinárias se tornam vulgares.
Quais teriam sido as
reações de uns e de outros, chegada a hora de Nosso Senhor partir de Nazaré
para dar início a sua vida pública? Era o Homem-Deus que ouvia os gemidos da
História e abria seus braços com amor para abarcar as misérias, não só daqueles,
mas de todo o gênero humano. Diante desta grandiosa manifestação de
benquerença, se tornaria patente o valor de os familiares e próximos de Jesus
de Nazaré terem vencido aquela prova que Deus lhes mandou, trazendo um
inestimável ensinamento para todos nós, como poderemos constatar no Evangelho
do 10º Domingo do Tempo Comum.
II - VER NO FILHO DE DEUS APENAS O FILHO DO HOMEM
Naquele tempo, 20a Jesus voltou para casa com os seus
discípulos.
De onde “voltou para
casa” o Divino Mestre com seus discípulos? Da montanha, depois de haver
escolhido os doze Apóstolos (cf. Mc 3, 13-19). Para estes se compenetrarem da
nova situação e da responsabilidade inerente à eleição de que tinham sido
objeto, Jesus fez com que, no contato com o público, comprovassem a mudança
ocorrida em suas vidas: “O Senhor reconduz para casa os Apóstolos por Ele
eleitos na montanha, como para adverti-los de que, depois de terem recebido a
dignidade do apostolado, deviam tomar consciência de sua missão”.1
Jesus estava em
Cafarnaum, provavelmente na casa onde curara a sogra de Pedro (cf. Mc 1, 29-3
1; Lc 4, 38-39). Por ser local já conhecido, pelos muitos milagres ali
operados, as pessoas começavam a se aglomerar ali antes do amanhecer, desejosas
de ver o Messias.
Evangelizar pressupõe esquecer-se de si
20b E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer
podiam comer.
Diferentemente de
nossos dias, naquele tempo as refeições eram realizadas a portas abertas. Isto
tem sua razão de ser, uma vez que a alimentação é um momento propício para a
conversa e o relacionamento social. Também Nosso Senhor Se conformou a este
uso, como no banquete em casa de Simão, o fariseu, no qual entrou uma pecadora
arrependida e Lhe lavou os pés com suas lágrimas (cf. Le 7, 36-38).
No episódio aqui
narrado, Jesus tinha diante de Si uma multidão que ansiava por conviver com Ele
e haurir seus ensinamentos, pois O estimava e se encantava com sua presença.
Porém, havia ainda os que lá iam por egoísmo, interessados tão só em obter a
cura de alguma doença ou outros benefícios. No entanto, apesar do costume das portas
abertas, era completamente inusitado tanto alvoroço e tamanha afluência de
gente, que abarrotava a sala e chegava até o divã em que Jesus tornava a refeição.
E de se imaginar que, ao estender a mão para apanhar, quiçá, um cacho de uvas,
aproximava-se um cego, tocava impetuosamente em seu braço e, de imediato,
recuperava a vista; em seguida cedia o lugar a um surdo que suplicava lhe fosse
restabelecida a audição... E assim, grande quantidade de doentes entrava e
saía, a ponto de o Mestre e os discípulos ficarem impedidos de comer. Os
Apóstolos estavam experimentando, naquela ocasião, o ônus que lhes fora
confiado no alto da montanha.
O egoísta julga insensata a Sabedoria
21 Quando souberam disso, os parentes de Jesus saíram
para agarrá-Los porque diziam que estava fora de Si.
Os sinais e a palavra
do Redentor difundiram sua fama por toda a região. E, como era de se esperar,
começaram a circular boatos, às vezes os mais desencontrados e exagerados
possíveis. Nessas circunstâncias, este versículo relata algo dramático: determinados
parentes de Jesus, daqueles que em nada atinaram para a grandeza d’Ele, começaram
a tê-Lo por desvairado. Ao contrário dos dias atuais, naquele tempo o senso
familiar era fortíssimo, o que é uma coisa sadia. As famílias, bem constituídas
e muito unidas, formavam verdadeiros batalhões, tão coesos que a ação de um dos
membros repercutia em todo o conjunto. Era incalculável a alegria e a honra de
ser parente próximo do Messias! Mas alguns se reuniram para comentar o que se
dizia d’Ele, de sua doutrina e milagres. Tinham-No visto crescer em Nazaré,
onde não frequentara a escola de nenhum mestre, e de repente têm notícia de
quanto suas pregações arrebatam multidões. Onde teria Ele aprendido tudo isso?
Como não compreendiam o que se passava, indispuseram-se contra Ele. Julgaram-No
talvez ridículo e receavam que suas atitudes manchassem o nome de sua estirpe.
Temiam inclusive a má repercussão junto às autoridades, pois Jesus poderia ser
considerado — como de fato o foi depois — um rebelde. Já haviam surgido antes
revolucionários, desejosos de liderar um movimento para libertar Israel do jugo
romano e de seus impostos, que fracassaram em seu intento. Poderiam pensar tais
parentes ser este também o intuito de Nosso Senhor. E, por muitos prodígios que
fizesse, estaria fadado à ruína por insuficiência de meios. No fundo, como Ele
vinha contradizendo os costumes mundanos e estava empenhado numa missão diferente
de tudo quanto era tido por normal, não O aceitavam e pretendiam tratá-Lo como
um louco.
É de se notar, em
sentido inverso, como estes mesmos familiares que agora buscam afastá-Lo do
apostolado por acharem que este depõe contra sua reputação, mais tarde,
constatando sucesso de Nosso Senhor, pedir-Lhe-ão para Se
manifestar na Judeia (cf. Jo 7, 3-5), certamente para que o sumo pontífice e o Sinédrio
vissem a importância da família que tinha em seu seio tal profeta taumaturgo.
Subindo Jesus na escala social, elevaria todos os seus... Ora, que Ele não
houvesse sido admirado pela maioria em sua cidade, Nazaré, já é difícil
entender; todavia, que diante das maravilhas que se seguiram ao início de sua
vida pública não O aceitassem é inconcebível! “Veio para o que era seu, mas os
seus não O receberam” (Jo 1, 11)...
Com frequência, quem ousa
se opor ao mundo não é compreendido e pode ser rejeitado e perseguido até por
sua família, quando esta quer os seus membros para si e não para Deus, de quem
os recebeu para depois Lhe serem restituídos... Trata-se de uma apropriação
injusta de algo pertencente ao Criador. A vocação significa o selo divino
cobrando o que, de iure, é seu. Por isso, é das piores, na face da Terra, a
maldição contra os pais que desviam os filhos do chamado religioso! Roubar algo
a um pobre acarreta um castigo menor do que arrancar de Deus a pessoa designada
por Ele para seu serviço. Quantas vezes presenciamos isso na História! O pai do
grande São Francisco de Assis, Pedro Bernardone, por exemplo, em certo momento o
deserdou e lhe retirou todos os bens, até a própria roupa do corpo, por não
aceitar a vida virtuosa do filho. E a mãe e os irmãos de São Tomás de Aquino prenderam-no
numa torre, para impedi-lo de se tornar frade dominicano. Este é o problema da
família que não está constituída com vistas ao amor a Deus, cujos membros
procuram tirá-Lo do trono que Lhe pertence, a fim de que os acontecimentos
gravitem em torno de cada um.
A afeição dos
familiares de Nosso Senhor por Ele é tipicamente a do egoísta; conclui-se daí
que todos os egoístas são parentes daqueles parentes de Jesus. Como eles,
também nós, se procuramos nos colocar sempre no centro de tudo, consideraremos
insensatez as obras de Deus e exageradas as exigências da Religião. Eis uma
importante lição desta Liturgia: devemos evitar tal delírio, tomando enorme cuidado
com a sede de elogios e o desejo de chamar a atenção sobre nós, para que os
outros nos adorem. Saiamos de nós mesmos e seja a glória de Deus o eixo de
nossa existência!
Por inveja, uma acusação contraditória
22 Os mestres da Lei, que tinham vindo de Jerusalém,
diziam que Ele estava possuído por Belzebu, e que pelo príncipe dos demônios
Ele expulsava os demônios.
Homens sem fé, os
mestres da Lei mencionados neste versículo foram incapazes de compreender quem
era Jesus. Expulsava demônios, curava todo tipo de doenças e ressuscitava
mortos, causando-lhes inveja, pois eles iam de ter igual poder; mas, como não o
possuíam, receavam perder a posição privilegiada da qual desfrutavam naquela sociedade.
Começaram, então, com supino mau espírito, a atribuir o império do Salvador
sobre os demônios a um conchavo com Belzebu.
Jesus ridiculariza seus inimigos
23 Então Jesus os chamou e falou-lhes em parábolas: “Como
é que satanás pode expulsar a satanás? 24 Se um reino se divide contra si
mesmo, ele não poderá manter-se. 25 Se uma família se divide contra si mesma,
ela não poderá manter-se. 26 Assim, se satanás se levanta contra si mesmo e se
divide, não poderá sobreviver, mas será destruído”.
A resposta de Nosso
Senhor visava mostrar quão infundada era a acusação levantada contra Ele. Se
dois exércitos travam batalha, o general de um dos lados mandaria seus soldados
combater os próprios companheiros no teatro de guerra? Este seria, sem dúvida,
derrotado! Se realmente Jesus estivesse agindo por obra de Belzebu para
expulsar os demônios, significaria estar o inferno em “guerra civil”, em consequência
da qual os demônios em breve se destroçariam. Ora, quando numa cidade os habitantes
se digladiam entre si, o inimigo externo pode dispensar o envio de homens de
armas para atacá-la, porquanto eia acabará por se destruir. Qualquer estrategista
deixará livre curso a essas lutas intestinas, para só depois subjugar os
sobreviventes. Portanto, os sinedritas não deveriam se preocupar, pois toda a
obra de Nosso Senhor soçobraria sem demora. Por que haveriam de estar aflitos?
A este respeito diz São João Crisóstomo: ‘Vede quanto ridículo há na acusação, quanta
estupidez, quanta íntima contradição! Porque é contradição dizer, primeiro, que
satanás está firme e expulsa os demônios, e logo acrescentar que está firme
justamente pelo que devia perecer” 2
27 “Ninguém pode entrar na casa de um homem forte para
roubar seus bens, sem antes o amarrar. Só depois poderá saquear sua casa”.
Esta imagem deixava
ainda mais evidente a incoerência dos mestres da Lei. Todos sabiam
perfeitamente que para se roubar uma casa é preciso antes imobilizar o dono.
Então, seria verossímil que, segundo diziam os escribas e fariseus, Jesus repelisse
os espíritos maus pelo poder de Belzebu, seu príncipe, e, em combinação com
ele, arruinasse seus subalternos? “Vede como” — observa o mesmo Crisóstomo — “o
Senhor demonstra o contrário daquilo que seus inimigos tentavam afirmar. [...]
Ele mantinha atado com absoluta autoridade não só os demônios, como também seu
próprio capitão”.3 Mais uma vez, com uma simples parábola, o Divino Mestre
desmascarava seus adversários.
Gravidade do pecado contra o Espírito Santo
28 “Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens,
tanto os pecados, como qualquer blasfêmia que tiverem dito. 29 Mas quem
blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas será culpado de um
pecado eterno”. 30 Jesus falou isso, porque diziam: “Ele está possuído por um
espírito mau”.
Tornando mais grave
sua argumentação, Nosso Senhor acrescenta que, ao fazer esta acusação, eles
incorriam em pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão. Entretanto,
se Jesus Cristo veio ao mundo para resgatar os pecadores, como explicar que
existam faltas irremissíveis?
A primeira exigência para
obter o perdão é que Deus, sendo o ofendido, o queira dar; e Ele o quer, a
ponto de estar constantemente com as mãos estendidas para nos acolher. Não obstante,
outra condição essencial para ser absolvido é o reconhecimento do erro, seguido
da dor de o ter cometido, pois sem ela tal ato perde o sentido. A impenitência
final “exclui os meios que levam à remissão dos pecados”,4 e o pecador acabará,
no fundo, atribuindo sua falha ao próprio Deus. Esta atitude “é o espírito de
blasfêmia, que não se perdoa nem neste século nem no futuro. [...]
Embora a paciência de
Deus convide à penitência, pela dureza de coração, por seu coração impenitente,
[o pecador] acumula ira para o dia da cólera e da revelação do justo Juízo de Deus,
o qual pagará a cada um conforme suas obras”. 5
Haveriam de ser
perdoados estes escribas e fariseus, cuja maldade chegava a tal extremo? Depois
de testemunharem a cura de cegos, leprosos e paralíticos, bem como a expulsão
dos mais terríveis demônios — obras todas indiscutivelmente messiânicas —,
negavam a verdade conhecida como tal ao ficar com ódio e desejo de matar Jesus,
declarando que agia em função do príncipe das trevas. E depois de serem
vencidos em todas as ciladas que tramaram contra o Divino Mestre, ainda não
admitiam seu desatino, mas, pretendendo-se detentores da razão, caíam em
impenitência e obstinação. Por fim, cheios de perfídia, eles rejeitavam os
carismas de Nosso Senhor, a atuação do Espírito Santo através da sua humanidade
santíssima e, por inveja da graça fraterna, desprezavam os benefícios que Ele
derramava às torrentes por onde passava.
Cabe-nos, em relação
à ação do Espírito Santo, ser totalmente flexíveis, sem a menor sombra de
inveja. Devemos, então, alegrar-nos com os benefícios concedidos a outrem, “para
que a abundância da graça em um número maior de pessoas faça crescer a ação de
graças para a glória de Deus” (II Cor 4, 15), como nos ensina São Paulo na
segunda leitura (II Cor 4, 13-18—5, 1). Se a nós o Senhor deu pouco ou muito, é
desígnio d’Ele. O importante é cada um receber tudo quanto está destinado por
Deus para a sua maior glória. Ao vermos alguém favorecido com um dom que não
temos, seja natural ou sobrenatural, se admirarmos a obra de Deus naquela alma,
progrediremos na vida espiritual. Se, pelo contrário, procedermos à maneira
daqueles familiares de Jesus ou dos fariseus, afundaremos como eles.
Maria Se apresenta para enfrentar os parentes
31 Nisso chegaram sua Mãe e seus irmãos. Eles ficaram do
lado de fora e mandaram chamá-Lo. 32 Havia uma multidão sentada ao redor d’Ele.
Então Lhe disseram: ‘Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura”.
Conforme comentam certos
Padres da Igreja, Nossa Senhora, sabendo que alguns planejavam fazer mal a
Jesus, apresentou-Se para enfrentá-los: “Como os que estavam próximos do Senhor
iam apoderar-se d’Ele por julgá-Lo louco, eis que acorreu sua Mãe, movida por
um sentimento de amor e piedade”.6 Bonita interpretação, que mostra a
combatividade de Maria, aspecto frequentemente esquecido. Junto com Ela estavam
os “irmãos”, termo que, na linguagem bíblica, designava os parentes em geral,
como primos e tios.
Tão coesa era a
muralha humana formada ao redor de Nosso Senhor, que impedia Nossa Senhora e
seus acompanhantes de entrarem na casa e se aproximarem d’Ele. Os presentes, de
acordo com o arraigado conceito familiar da época, consideravam a maternidade
como algo supremo e, por isso, avisaram Jesus da chegada de sua Mãe, julgando
normal interromper a pregação para atendê-La.
As relações sobrenaturais, muita mais fortes que as do sangue
33 Ele respondeu: “Quem é minha mãe, e quem são meus
irmãos?” 34 E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Aqui
estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz
a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.
Cristo, todavia,
aproveitou a ocasião para contrariar a tendência do povo judeu a um excessivo apreço
à família. Se Ele, levantando-Se, fosse ao encontro de sua Mãe e de seus
irmãos, respaldaria e solidificaria este afã... Em vez disto. sua resposta
deixa clara a superioridade da relação espiritual sobre a natural. Prezam-se
tanto os vínculos do sangue! Sem dúvida têm seu peso, mas não constituem o
essencial e só adquirem sentido se considerados em função de Deus. Enquanto os
laços humanos abrangem pequena quantidade de membros, os sobrenaturais incluem
irmãos numerosos “como as estrelas do céu, e como a areia na praia do mar” (Gn
22, 17). Aplica-se, neste caso, o belo princípio de São Tomás: “os bens
espirituais podem ser possuídos ao mesmo tempo por muitos, não, porém, os bens
corporais”.7
O Filho de Deus veio
exatamente para nos tornar participantes da sua família, de forma a sermos seus
irmãos e filhos, num imbricamento com Ele muito mais estreito do que o originado
no sangue. “Não há senão um parentesco legítimo, o qual consiste em fazer a vontade
de Deus. E este é um modo de parentesco melhor e mais importante que o da
carne”.8 Assim, o Divino Mestre olhou para os mais fervorosos, isto é, aqueles
que procuravam aproximar-se d’Ele com o desejo de ouvi-Lo e de ser por Ele
instruídos, que estavam, portanto, com predisposição para aceitar e abraçar
seus ensinamentos, e afirmou: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a
vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”. Incomparavelmente mais
do que a qualquer pessoa na Terra, por muito que a esta devamos, precisamos ser
gratos a Deus, abandonar-nos em suas mãos e obedecer-Lhe, pois fomos por Ele
criados. Ele enviou seu Filho para nos redimir, a fim de que tenhamos a vida —
a própria vida de Deus! — e a tenhamos em abundância (cf. J0 10, lO).
Por tal motivo, o
Menino Jesus, aos 12 anos de idade, quando após três dias de busca foi
encontrado por Nossa Senhora e São José no Templo ouvindo e interrogando os doutores
da Lei, declarou: “Não sabíeis que devo ocupar-Me das coisas de meu Pai?” (Lc
2, 49). Suas palavras nos recordam que nossa filiação primeira é a divina, e só
em segundo plano havemos de considerar a do sangue. Ao ser concebida, a criança
encontra-se numa total sujeição aos pais e vai aos poucos crescendo, ainda amparada,
orientada e governada por eles, até se tornar independente. No campo sobrenatural
ocorre o oposto: a partir do nascimento, isto é, do Batismo, o relacionamento
com Deus e a dependência d’Ele vão aumentando, e atingem o seu grau máximo
quando a alma chega à visão beatífica. Permanece, então, numa inteira e
completa familiaridade com o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Um altíssimo elogio à sua Mãe Santíssima
Longe de desprezar
Nossa Senhora — o que seria impensável! —, Jesus Lhe dirigia o maior elogio
possível, pois afirmava ser Ela mais sua Mãe por fazer a vontade de Deus do que
por Lhe ter transmitido a vida humana. “Não fala assim para negar sua Mãe, mas
para manifestar ser Ela digna de honra não só pelo fato de haver engendrado
Cristo, como também por todas suas virtudes”.9 Ao longo de cerca de trinta anos
de convívio com seu Filho, Maria foi perfeitíssima na realização da vontade d’Ele,
guardando todas as coisas no seu coração (cf. Lc 2, 51).Porque acreditava que
Jesus era a Verdade, a Virgem Santíssima — em contraste com aqueles que O
julgavam louco — Se conservava sempre numa postura de submissão a Ele, mesmo em
face daquilo que não entendia.
III - SEJAMOS FAMILIARES DE JESUS, COMO O FORAM MARIA E JOSÉ
A Liturgia de hoje é
de uma importância fundamental para compreendermos o valor desta
“consanguinidade espiritual” com Nosso Senhor Jesus Cristo, à qual jamais
podemos renunciar. Quantas vezes, infelizmente, nos comportamos de modo
egoísta, nos colocamos no centro de tudo e cometemos uma falta! Fazer a vontade
de Deus significa sermos retíssimos e íntegros, sob todos os pontos de vista, à
semelhança da Mãe de Jesus.
Para isso precisamos
admitir nossa debilidade, cientes de que, conforme nos ensina o Divino Mestre,
a podridão nasce dentro do homem (cf. Mc 7, 21-23). Devemos, isto sim, nos surpreender
quando praticamos um ato bom, reconhecendo que este provém da filiação espiritual
que Ele nos concedeu pela graça. Se os fariseus sentissem a miséria que tisnava
seu interior, talvez tivessem olhado para Nosso Senhor com despretensão e acolhessem
em sua alma a salvação. No Céu estão, de fato, não apenas os inocentíssimos, mas
também São Dimas — o bom ladrão, canonizado em vida pelo Redentor (cf. Lc 23,
43) —, Santo Agostinho, Santa Maria Madalena... e tantos outros que se confessaram
culpados e obtiveram perdão. Em sentido oposto, no inferno padecem todos os
pecadores que, por orgulho, persistiram no erro. Eis o grande problema da
natureza humana de caída.
Peçamos a Maria
Santíssima o dom extraordinário da humildade, para nos serem abertas as portas
da eterna bem-aventurança e chegarmos à plenitude da familiaridade com Nosso
Senhor Jesus Cristo!
1) SÃO BEDA. In Marci
Evangelium Expositio. L.I, c.3: ML 92, 162.
2) SÃO JOÃO
CRISÓSTOMO. Homilía XLI, nl. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45). 2.ed.
Madrid: BAC, 2007, v.I, p.795.
3) Idem, n.2, p.799.
4) SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.14, a.3.
5) SANTO AGOSTINHO.
Sermo LXXI, n.20. In:
Obras. Madrid: BAC, 1983, v.X, p.326.
6) TEOFILATO, apud
SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Marcum, c.III, v.31-35
7) SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. III, q.23, a.1, ad 3.
8) SAO JOAO CRISÓSTOMO. Homilía XLIV, nl. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45), op.
cit., p.841.
9) TEOFILATO, op. cit.
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