Comentário ao Evangelho – XIV
Domingo do Tempo Comum – Ano B – Mc 6, 1-6
“Naquele tempo, 1 Jesus foi a Nazaré, sua
terra, e seus discípulos O acompanharam. 2 Quando chegou o sábado, começou a
ensinar na sinagoga. Muitos que O escutavam ficavam admirados e diziam: ‘De
onde recebeu Ele tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres
que são realizados por suas mãos? 3 Este homem não é o carpinteiro, filho de
Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui
conosco?’. E ficaram escandalizados por causa d’Ele. 4 Jesus lhes dizia: ‘Um
profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares’. 5 E
ali não pôde fazer milagre algum. Apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as
mãos. 6 E admirou-Se com a falta de fé deles. Jesus percorria os povoados das
redondezas, ensinando” (Mc 6, 1-6).
Admirar, essa alegria!
Iludido, busca o homem a felicidade nas sendas do egoísmo,
julgando ser tão mais feliz quanto mais pensar em si. Ignora ele que a
verdadeira alegria de alma se encontra somente na admiração, no voltar-se
enlevado ao que é superior.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
I – O profeta, homem que comove
as consciências
Ao nos
criar, Deus teve em vista nossa participação em sua felicidade eterna. E para
esse fim, em nenhum instante nos abandona, sempre velando sobre cada um como se
fosse seu filho único. O cuidado da zelosa mãe em relação à criança, por
exemplo, que a todos comove, não passa de um belo, mas pálido símbolo do amor
divino.
Assim,
criados para uma eternidade bem-aventurada, temos gravada em nossa alma a Lei
Natural — que nos ordena fazer o bem e evitar o mal — e estamos à procura
constante de Deus, como as plantas, pelo heliotropismo, sempre buscam a luz do
Sol. Para nos auxiliar neste “teotropismo”, Deus, através de uma pessoa ou de
alguma circunstância, nos estimula a procurá-Lo com mais zelo e amor. Tal papel
desempenharam desde a Antiga Lei os profetas.
A voz do profeta, auxílio de Deus
para atingirmos nossa finalidade
A noção
corrente de profeta limita-se à de alguém com capacidade de prever o futuro. Entretanto,
é importantíssimo frisar que, embora com frequência seja este um dos seus
traços distintivos, contudo não é o principal e nem constitui a essência da sua
missão. O principal múnus profético consiste em ser o guia do povo de Deus,
indicando os caminhos para a salvação.
Historicamente,
tendo quase toda a classe sacerdotal judaica sido infiel à sua missão,
“tornou-se necessária a irrupção, na sociedade israelita, desses colossos da
espiritualidade denominados profetas — procedentes, em sua maioria, do elemento
secular da nação — para sanear religiosamente Israel. [...] Os valores
espiritualistas da Lei adquirem então seu verdadeiro relevo, e foi tal a altura
moral da pregação profética que só o ideal evangélico a superou”.1
É o que
vemos na primeira leitura deste domingo: Deus envia Ezequiel como profeta para
alertar aqueles homens de cerviz dura e coração empedernido que se desviaram do
reto caminho: “Filho do homem, Eu te envio aos israelitas, nação de rebeldes,
que se afastaram de Mim. A esses filhos de cabeça dura e coração de pedra. Quer
te escutem, quer não — pois são um bando de rebeldes —, ficarão sabendo que
houve entre eles um profeta” (Ez 2, 3-5).
Ou
seja, Israel rebelara-se contra Deus. E, em vez de castigo, por misericórdia, a
esse povo é enviado um profeta, porta-voz que transmite a vontade divina
advertindo contra os desvios cometidos e chamando à penitência. Por isso, não
poderão os israelitas alegar a atenuante do desconhecimento, da inadvertência,
pois “houve entre eles um profeta”.
Diante do profeta, submissão ou
revolta
Ensina-nos
a doutrina católica que, pelo Batismo, todos participamos do sacerdócio de
Cristo e de sua missão profética e régia.2 Assim, enquanto batizados, somos
profetas perante a sociedade, pois devemos, pelo exemplo de vida, testemunhar a
verdadeira Fé, indicando o caminho para a salvação eterna e, se preciso,
alertando contra os erros. Se isto se aplica a todo fiel leigo, a fortiori, o
sacerdote que fala do púlpito, lembrando as verdades eternas, exerce a missão
profética.
Ora,
assim como, muitas vezes, por nossas misérias não somos dóceis à voz da
consciência — que atua dentro de nós, como um profeta a nos lembrar o dever — e
criamos sofismas para sufocá-la, também pode ser que nos irritemos com quem em
relação a nós exerce o papel profético e nos invectiva justamente. Pois salvo
uma graça, a tendência em geral do homem ao ser admoestado é a revolta
interior.
É o que
ocorre quando ao ouvir um sermão ou fazer uma leitura espiritual sentimos o
aguilhão da consciência contra algum vício ou defeito e, por apego a este, não
queremos dar ouvidos nem assentimento à voz da graça.
Esta
triste situação de alma, mais comum do que se pode pensar, encontra sua
arquetipia no Evangelho recolhido pela liturgia deste domingo: é o Profeta por
excelência, Jesus Cristo, o qual veio anunciar a Boa Nova e indicar o Caminho
que é Ele mesmo, “causa de queda e elevação de muitos em Israel” e “um sinal de
contradição” para serem “revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2,
34-35).
II – Reação do espírito humano diante
da Superioridade
“Naquele tempo, 1 Jesus foi a Nazaré, sua
terra, e seus discípulos O acompanharam. 2 Quando chegou o sábado, começou a
ensinar na sinagoga”.
Em
Nazaré, Nosso Senhor viveu por cerca de trinta anos, desde a volta do Egito,
após a morte de Herodes (cf. Mt 2, 15.23), até o início de sua vida pública com
o Batismo no Jordão (cf. Mt 3, 13-17). Nessa cidade, nunca Se manifestara
enquanto Deus, mas apenas como o filho de José e de Maria; uma pessoa comum,
portanto.
Ora, em
certo momento, Ele desapareceu e nessa Nazaré apenas chegavam os ecos de seus
grandiosos milagres. A Galileia estava certamente em alvoroço pelas repercussões
relativas aos feitos de Jesus, como a ressurreição da filha de Jairo e a cura
da hemorroíssa, realizadas havia pouco conforme relata São Marcos (5, 22-42), e
tantas outras ações extraordinárias. E deveriam também ouvir falar das
maravilhosas doutrinas inéditas pregadas pelo Divino Mestre, bem como das
encantadoras parábolas que tanto entusiasmavam os homens de boa fé.
Não
obstante, podemos supor, por um lado, ser o ceticismo uma reação não incomum
diante desses relatos, pois à natureza humana custa a dar crédito a algo de
notável relacionado com quem participa de nosso convívio diário. Mas, por outro
lado, os habitantes de Nazaré sentiam um certo orgulho, porque sua cidadezinha
ia adquirindo celebridade em razão do Nazareno.
Nessas
circunstâncias, chega Jesus à sua terra. Podemos imaginar o burburinho
provocado ao verem-No entrar na sinagoga, onde nunca havia pregado, e começar a
comentar a Escritura de um modo jamais ouvido.
Admiração, primeiro movimento
diante da superioridade
2b “Muitos que O escutavam ficavam
admirados...”.
São
Lucas acrescenta importantes pormenores relativos a este episódio. Convidado a
falar, Jesus abriu o livro do profeta Isaías onde está escrito: “O Espírito do
Senhor está sobre Mim, pois Ele Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres”.
A seguir, afirmou: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de
ouvir”. E o Evangelista conclui: “Todos testemunharam a favor d’Ele,
maravilhados com as palavras cheias de graça que saíam de sua boca” (cf. Lc 4,
18-22).
A
primeira reação, portanto, foi de admiração geral, tão ricas, densas e
originais devem ter sido as palavras proferidas pelo Salvador, certamente não
registradas em sua totalidade pelo Evangelista. De fato, é este o primeiro
movimento de toda criatura humana no seu relacionamento social, ao encontrar
alguém que se sobressai a algum título. Em seguida, contudo, em razão do
instinto de sociabilidade que nos impele a entrarmos em contato com os demais,
a inevitável tendência natural é a comparação: “Seríamos também capazes de
realizar o mesmo?”. O teor afirmativo ou negativo da resposta determinará como
consequência imediata uma reação interna de alegria ou de tristeza.
No caso
afirmativo, ficamos satisfeitos por nos julgarmos aptos para igualar, ou até
superar, o outro. E podemos tomar duas atitudes. Uma boa, de compreender que se
trata de dom gratuito de Deus — pois o Espírito Santo “distribui a cada um seus
dons conforme quer” (I Cor 12, 11) —, e temos o dever de utilizá-lo para ajudar
os outros a se santificarem, conforme ensina o Apóstolo: “A cada um é dada a
manifestação do Espírito em vista do bem de todos” (I Cor 12, 7). E uma outra
ruim, de orgulho, desprezando aquilo que os outros possuem.
No caso
negativo, sentiremos tristeza ao constatar nossa inferioridade. E aqui também
são possíveis duas atitudes. A primeira, boa, consiste em passar por cima dessa
instintiva tristeza e admirar a qualidade do outro, nos encantando com a sua
superioridade. A segunda, má, de ter um certo ressentimento, consequência da
inveja perante o valor alheio.
As duas
atitudes boas nos trazem paz de alma, pois propiciam reconhecer a grandeza do
Criador através de seus reflexos nas pessoas. Assim procede quem se habitua a
considerar os aspectos da vida cotidiana elevando-se a partir deles a
superiores cogitações. São aqueles que, no passo seguinte à admiração, sempre
estão desejosos de louvar, estimar e servir aquilo que é bom, verdadeiro e
belo.
Ora,
dada a natureza humana decaída, sem auxílio da graça, as reações posteriores à
comparação são ordinariamente ruins. Arquetípico exemplo disto, encontramos nos
versículos seguintes, nos quais o Evangelista resume a reação dos nazarenos
diante da pregação de Jesus.
A consequência do egoísmo
2b “... e diziam: ‘De onde recebeu Ele tudo
isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são
realizados por suas mãos? 3 Este homem não é o carpinteiro, filho de Maria e
irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui
conosco?’. E ficaram escandalizados por causa d’Ele”.
Na
cidade de Nazaré, excetuando Nossa Senhora, não houve provavelmente quem
tomasse a atitude correta de admirar a superioridade de Jesus. Depois da
primeira reação boa, passaram eles a considerar apenas os aspectos humanos, e
logo surgiram as dúvidas de má fé, seguidas de inveja.
Uns se
perguntavam de onde vinha tanto conhecimento, uma vez que o Pregador não estudara
com nenhum dos mestres conhecidos na região. Dentre estes, alguns até poderiam
estar presentes na sinagoga naquele momento, e considerassem intolerável Jesus
sobrepujá-los no saber, justamente eles que tanto haviam estudado.
E,
quiçá, se perguntavam quais as artimanhas empregadas pelo jovem Mestre para
adquirir tão grande conhecimento em tão breve espaço de tempo.
Misturava-se
neles a inveja com um fundo de falta de fé, ao quererem julgar as coisas pelas
suas aparências primeiras. Não souberam transcender a figura do filho do
carpinteiro, que ali havia vivido tantos anos exercendo um trabalho artesanal,
numa situação inteiramente ordinária e que, de repente, surge como Sábio,
Taumaturgo e Exorcista.
Ao
mesmo tempo, não podiam negar serem verdadeiros os retumbantes milagres
atribuídos ao Redentor, mas, em sua cegueira espiritual, preferiam fechar os
olhos para a realidade superior, e se refugiar numa explicação natural, que não
lhes cobrava uma mudança de vida.
Assim,
“ficaram escandalizados por causa d’Ele”. É o desprezo a consequência
necessária da falta de amor e da inveja. Com severidade, São Basílio invectiva
esse defeito de alma: “A inveja é um gênero de ódio, o mais feroz, porque os
benefícios aplacam quem por alguma outra causa é inimigo nosso, mas o bem que
se faz ao invejoso irrita-o mais; e quanto mais ele recebe, mais se indigna, se
entristece e se exacerba. Isso porque o desgosto que sente pelo poder do
benfeitor é maior que a gratidão pelos bens que dele recebe. [...] Os cães
tornam-se mansos se alguém lhes dá de comer; os leões se domesticam, quando se
cuida deles; mas os invejosos se enfurecem mais com os benefícios”.3
O perigo de não ver o sublime
4 “Jesus lhes dizia: ‘Um profeta só não é
estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares’”.
Anteriormente,
relata São Marcos estarem alguns parentes de Jesus envergonhados d’Ele, a ponto
de, em certa ocasião, irem à sua procura “para detê-Lo, pois diziam: ‘Está
ficando louco’” (Mc 3, 21).
Sem
dúvida, encontravam-se na assembleia vários de seus familiares, máxime
considerando ser pequenina a cidade. E talvez eles próprios se comparassem com
Jesus, imaginando serem a Ele equivalentes dada a consanguinidade. Constatando,
porém, sua evidente inferioridade, nascia a inveja e o desejo de destruir o bem
visto no outro, por julgar que este lhes fazia sombra. Tal é a natureza humana
que, em geral, a pessoa não tem inveja de um desconhecido, mas sim do amigo,
daquele com quem convive.
Por
isso, à semelhança de Nosso Senhor, quem abraça as vias da virtude pode ser
muito bem considerado em alguns ambientes, mas nem sempre o será entre os seus
íntimos.
A divindade de Nosso Senhor
deveria transparecer
Assueta vilescunt — a
rotina pode acabar envilecendo até as coisas mais grandiosas. Ora, Jesus, Deus
e Homem verdadeiro, encontrava-Se onde vivera tanto tempo como pessoa comum,
desejoso de fazer bem a seus mais próximos.
Não
podemos crer, entretanto, que o convívio com Ele não tivesse dado margem a transparecer
algo de incomum em incontáveis ocasiões. Em virtude da íntima união entre a
natureza humana e a divina em Cristo, por debaixo dos véus de sua Perfeitíssima
Humanidade, deveria com frequência transluzir de alguma forma a Segunda Pessoa
da Santíssima Trindade, ultrapassando em tudo qualquer capacidade humana de
perfeição, de modo a ficar patente tratar-Se Jesus de um Ente completamente
fora do comum. “Enquanto em seu puríssimo Corpo a natureza evoluía devagar para
a plenitude, ‘a sabedoria divina enchia sua santa alma e a graça aí esgotava
todos os seus dons’. [...] Ele temperava as manifestações exteriores de suas
perfeições ocultas, como a árvore nova que desdobra pouco a pouco seus brotos,
suas folhas e flores antes de formar seus frutos; como o Sol que, depois de
clarear ligeiramente o horizonte, colore-o com os vermelhos crescentes da
aurora antes de inundar o espaço com seus raios vitoriosos e mostrar sua face
resplandecente” 4, comenta Monsabré.
Nosso
Senhor deveria ser a perfeição nos gestos, nas atitudes e até no caminhar. E o
que dizer de sua voz incomparável? A beleza de sua alma espelhava-se
maravilhosamente em sua face e, sobretudo, em seu olhar. Dotado de todas as
qualidades humanas possíveis, Ele era belo, nobre e distinto no mais alto grau.
Tudo n’Ele transluzia uma misteriosa e inefável superioridade.
Por que não viram: egoísmo e
mediocridade
Entretanto,
quando Ele foi anunciar a salvação aos parentes e aos conhecidos, estes não
creram. Vemos nisto quanto é terrível a tendência da natureza humana de julgar
as coisas pela aparência, e não aceitar o que é superior.
Essa
cegueira espiritual é fruto da mediocridade. O medíocre nunca reconhece os
valores que não lhe dizem respeito; ele é arquiegoísta. E todo egoísta é
medíocre, porque são defeitos recíprocos e inseparáveis. A mediocridade leva a
pessoa a não querer prestar atenção em nada mais elevado. E a logo procurar
denegrir. Por isso, com intuito de humilhá-Lo, os nazarenos chamam Jesus de “o
carpinteiro”. Não há referência a São José, pois este, segundo alguns
comentaristas, já deveria ter falecido.
A admiração justifica
Muito
diversa teria sido a história do início da Igreja se os nazarenos tivessem
admirado e seguido Nosso Senhor.
O papel
da admiração e do amor é ressaltado por São Tomás ao afirmar que quem, mesmo
não batizado, orienta a sua vida segundo o seu verdadeiro fim, amando um bem
honesto mais do que a si mesmo, obtém pela graça a remissão do pecado
original.5 E comenta sobre este particular Garrigou-Lagrange: “Está justificado
pelo batismo de desejo, porque esse amor, que já é o amor eficaz a Deus, não é
possível no estado atual da humanidade sem a graça regeneradora”.6 Poderíamos
então inverter a afirmação do Doutor Angélico e dizer que quando uma pessoa ama
a si mesma mais do que a um bem, torna-se medíocre e egoísta, e, portanto,
abre-se a toda forma de mal, passando a ser cega de Deus. Assim como une-se a
Deus aquele que ama um bem superior mais do que a si mesmo, quem ama-se a si
mesmo acima de todas as coisas e mais do que a Deus, liga-se ao demônio.
Portanto,
neste sentido, o limite que separa o Céu do inferno é traçado por uma palavra:
admiração. A admiração por algo mais elevado me aproxima do Céu; e a admiração
a mim mesmo, me aproxima do inferno.
As consequências da cegueira de
Deus
5a“E ali não pôde fazer milagre algum”.
Mostra-se
muito cuidadoso o Evangelista ao precisar, neste versículo, que Jesus não Se
negou a fazer milagres, mas sim que “não pôde”, ou seja, não houve condições de
fazê-los. Ele, cuja simples sombra ou manto tantas vezes haviam curado, em
Nazaré, nenhum milagre operou. Ou os fez poucos, conforme relata São Mateus
(cf. Mt 13, 58).
Por
quê? Para que se realize um milagre são requeridas duas condições: em primeiro
lugar a fé dos beneficiários e, em segundo, a intercessão daquele por meio do
qual Deus exercerá o seu poder. Ora, o Divino Mestre não precisava de
intercessão, pois o poder é d’Ele; mas era necessária a fé dos outros.7 A
inveja dos nazarenos impedia que Jesus fosse aceito, e tudo o que Ele fizesse
seria analisado por um prisma meramente humano.
Ademais,
se Ele realizasse algum milagre grandioso, muito provavelmente, os nazarenos
iriam se revoltar e com isso agravariam o seu pecado, ofendendo ainda mais ao
Pai. Portanto, uma manifestação do poder de Jesus poderia condená-los
irremissivelmente. E Ele não queria perdê-los, mas sim salvá-los.
Colhe-se
aqui um importante ensinamento para o nosso apostolado: devemos fazer o
possível para que os outros não pequem e com isso não ofendam ao Pai, pois,
antes de tudo, é a glória de Deus o nosso objetivo. Então, algumas vezes
poderemos mostrar os dons que a Providência nos deu para fazer bem ao próximo;
em outras, pelo contrário, será necessário velá-los se forem causa de
condenação para alguns.
5b
“Apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. 6 E admirou-Se com a
falta de fé deles. Jesus percorria os povoados das redondezas, ensinando”.
Tais
curas não tinham o caráter estrondoso de um milagre que subverte as leis da
natureza. Com efeito, era frequente entre os sacerdotes hebreus a prática da
imposição das mãos para curar algumas doenças ou expulsar demônios. Deste modo,
Nosso Senhor ali desempenhou apenas o papel de um simples sacerdote. Enquanto
nas povoações vizinhas Ele ensinava e operava todo tipo de milagres, de sua
própria terra foi expulso pelos seus! (cf. Lc 4, 29).
III – Admiração, antídoto contra
a mediocridade
Se não
formos cuidadosos em combater a tendência ao egoísmo e à mediocridade,
manifestada pelos nazarenos nessa ocasião, teremos dificuldade em admitir e
admirar os valores alheios. Por isso, devemos nos exercitar na virtude do
desprendimento de nós mesmos. E o melhor meio para tal consiste em sempre
reconhecer os pontos pelos quais o próximo é superior a nós, desejando
admirá-lo e estimulá-lo. A admiração deve ser para nós um hábito permanente. E,
se notarmos em nós alguma superioridade real, devemos, sem jamais nos
vangloriar, utilizá-la para ajudar os demais. É o convite sempre atual à
virtude da humildade.
Bem a
propósito, diz a Igreja, na Oração do dia: “Ó Deus, que pela humilhação do
vosso Filho, reerguestes o mundo decaído...”. Assim como Deus agiu em relação
ao mundo, devemos nós proceder em relação a todos quantos nos são inferiores a
algum título. Cristo tomou-Se de compaixão pela humanidade e, tendo sempre a
alma na Visão Beatífica, assumiu uma carne padecente por amor aos homens.
O plano de Deus com o instinto de
sociabilidade
Este é
o grande plano de Deus para a sociedade humana: ao criar os homens com o
instinto de sociabilidade tão arraigado, teve em vista proporcionar-lhes a
possibilidade de uns ajudarem os outros, na admiração recíproca dos dons
recebidos, de maneira que, sobrepujando comparações e invejas, cada qual
culmine no desejo de servir e louvar aquilo que lhe é superior.
Dessas
verdades deflui uma importante consequência: o perdão, fruto da caridade. Caso
alguém nos faça ofensa, deve logo brotar do fundo de nosso coração um perdão
multiplicado pelo perdão. Assim agindo, daremos nossa contribuição para termos
uma sociedade na qual todos se perdoam mutuamente, pois sem cessar uns querem elevar
os outros.
Este é
um dos modos mais sapienciais de praticarmos o amor a Deus em relação ao nosso
próximo: querendo que este se eleve sempre mais na virtude e rendendo nossa
admiração e louvor às suas qualidades.
Uma
sociedade constituída com base neste princípio extraído do Evangelho eliminaria
tantos horrores que grassam hoje, e tornar-se-ia a mais feliz que possa existir
neste vale de lágrimas ao fazer com que todos se unam em função do amor a Deus.
Quando
essa sociedade se tornar realidade, bem poderá ser denominada Reino de Maria,
pois estará pervadida pela bondade do Sapiencial e Imaculado Coração da Mãe de
Deus. Reino no qual a Santíssima Virgem comunicará a todos uma participação no
supremo instinto materno que Ela tem por cada um de nós.8 E aí compreenderemos
inteiramente o que Ela mesma disse em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração
triunfará!”.
1 GARCIA
CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia comentada. Libros proféticos. Madrid: BAC,
1961, t.III, p.4.
2 Cf.
CCE 1268.
3 SÃO
BASÍLIO, O GRANDE. De envidia. Homil.11: MG 31, 371.
4 MONSABRÉ,
OP, Jacques-Marie-Louis. Exposition
du Dogme Catholique. Vie de Jésus-Christ. 9.ed. Paris: P. Lethielleux, 1903,
p.71.
5 Ensina
São Tomás que, “começando a ter o uso da razão”, a primeira coisa que ocorre ao
homem pensar é “deliberar sobre si mesmo”. E afirma: “Se ele se ordenar ao fim
devido, conseguirá pela graça a remissão do pecado original” (SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.89, a.6).
6 GARRIGOU-LAGRANGE,
OP, Reginald. El Salvador y su amor por nosotros. Madrid: Rialp, 1977, p.34.
7 Ensina
São Tomás que “não era conveniente fazer milagres entre incrédulos” (SÃO TOMÁS
DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.43, a.2, ad.1).
8 Cf.
SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte
Vierge, n.144. In: Œuvres complètes. Paris: Seuil, 1966.
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