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terça-feira, 25 de agosto de 2015

Evangelho XXII Domingo do Tempo Comum – Ano B - Mc 7, 1-8.14-15.21-23

Continuação dos comentários ao Evangelho XXII Domingo do Tempo Comum – Ano B
II – Divinizaram as leis humanas, e humanizaram as leis divinas
Naquele tempo, 1 os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus.
O Evangelista São Marcos é muito positivo, afirmativo e categórico. Enquanto discípulo de São Pedro, e acompanhando-o amiúde, podia comprovar a maldade dos fariseus que, aliás, já conhecia de sobra, porque também ele era judeu. Por isso empenhou-se em transcrever as discussões de Jesus com eles, quer lhe tivessem sido contadas por São Pedro, quer as houvesse testemunhado. Na cena recolhida pela Liturgia de hoje, ele narra como os escribas e fariseus de Jerusalém — ou seja, aqueles que mais frequentavam o Templo — foram até Nosso Senhor. Não era para se encantarem com Ele que O seguiam; vinham com o objetivo de estudar suas ações e encontrar alguma falha pela qual pudessem condená-Lo.
Tradições humanas que desviavam da Lei de Deus
2 Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado. 3 Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. 4 Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre.

Os escribas e fariseus eram extremamente minuciosos e detalhistas no cumprimento de uma série de costumes antigos, chegando às vezes a exageros ridículos. Estas normas, é preciso dizer, não faziam parte da Lei de Moisés, pois haviam sido transmitidas por tradição, mas, para eles, tinham valor de dogmas, superiores mesmo às da Revelação.
O douto padre Bonsirven assim se estende sobre este ponto: “A lei oral é apresentada no início como a cerca com a qual se circunda a Torá [a Lei de Moisés], para precisar aquilo que nela é muito vago ou muito amplo, e assegurar uma observância mais exata. Esta via, contudo, era muito perigosa: à força de se encher de novas prescrições, a cerca acabava por tornar-se sufocante; [...] as novas precisões, que sem cessar restringem o terreno onde era possível mover-se livremente, as deduções e assimilações infindas que ampliam as obrigações e multiplicam os interditos, submetendo ao preceito os mínimos objetos e introduzindo minúcias que a Lei não previa nem queria, não param de engrossar e elevar a cerca, apertando e amarrando o israelita numa profusão de mandamentos”.3 Em concreto, a origem das prescrições de purificação remontava à exigência divina de que os israelitas não se misturassem com os povos idólatras, para não serem atraídos por suas falsas religiões (cf. Ex 34, 12-16). Aos poucos, todavia, “o que no princípio servira para exprimir a santidade de Deus e de seu povo converteu-se num jugo insuportável, e o que era um meio de proteção veio a ser um laço para as almas”.4
Uma errônea teologia
Com efeito, os fariseus acabaram por inventar uma teologia de “universo fechado”, pela qual dividiam a criação em duas grandes categorias: a primeira era a das coisas puras, aquelas atinentes diretamente ao culto; a segunda, vastíssima, abarcava as demais coisas, tidas por eles como impuras.5 Concepção absolutamente errada, pois implicava em afirmar que Deus houvesse criado só alguns seres que tivessem relação com Ele, e todo o resto fosse autônomo, sem qualquer vinculação com o Criador.6
Por isso consideravam indispensáveis as abluções e os banhos após o contato corporal com tudo o que não fosse puro, pois, a seu ver, o homem ficava manchado. Quem comparecesse, pois, a um enterro e tocasse no defunto, ou mesmo quem atravessasse um cemitério e se encostasse num túmulo, estava obrigado a se purificar.7 Os copos, as vasilhas e as jarras eram lavados por fora, para não poluir as mãos de quem os usasse.8 Tal pormenor constituía um verdadeiro contrassenso, já que, por higiene, estes objetos deviam sobretudo ser limpos por dentro; mas o problema para eles cifrava-se na possibilidade de apanhá-los sem risco de contaminação.
Sob certo aspecto se entende que eles caíssem neste engano, já que o ponto de partida de seu raciocínio era válido. De fato, enquanto os Anjos, puros espíritos, não precisam ver, ouvir, degustar, apalpar ou sentir os odores, porque têm um conhecimento intuitivo, a criatura humana, composta de corpo e alma, adquire o conhecimento através dos sentidos e, portanto, necessita de um símbolo exterior para chegar às conclusões e compreender bem as realidades interiores. Os próprios Sacramentos são constituídos de matéria e forma a fim de serem mais acessíveis à nossa natureza. A matéria do Batismo, por exemplo, é a água — utilizada sempre para limpar —, de maneira que, ao ser derramada sobre a cabeça do batizando, significa e realiza a purificação completa da alma.

Ora, os fariseus haviam exacerbado esta inclinação natural do homem até o inconcebível, e era inevitável que hábitos estabelecidos de modo tão arbitrário, e não por amor a Deus, chegassem ao absurdo. Para citar um deles, no tratado Yadaim, dedicado às mãos, acha-se descrito como efetuar o meticuloso ritual de sua purificação, após tocar “indevidamente” nas coisas impuras. Note-se, entretanto, não se tratar de uma questão de mãos sujas ou limpas, e sim de mãos legalmente impuras segundo os conceitos farisaicos: “As mãos são puras ou impuras até a articulação. Derrama-se a primeira água até a articulação e a segunda mais além, voltando à mão, é puro. Se as duas abluções são feitas mais além da articulação, retornando à mão, é impuro. Se é feita a primeira [ablução] sobre uma mão, e depois, mudando de intenção, sobre as duas mãos, é impuro. Se a primeira [ablução] se faz sobre as duas [mãos], e depois, mudando de intenção, sobre uma só, é puro. Se uma mão está lavada e esfrega-se na outra, é impuro. Se ela se esfrega na cabeça ou na parede, é puro”.9
Jesus não obriga a preceitos humanos
5 Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?”
É curioso reparar como os escribas e fariseus não atacam o Divino Mestre de maneira direta, porque provavelmente Ele observava estas exigências tradicionais, a fim de evitar murmurações contra Si. Chegada a hora da refeição, lavava as mãos e cumpria o preceito, já que era costume adquirido. Ao mesmo tempo, permitia que outros — neste caso, alguns dos Apóstolos — o rompessem, pois estas minúcias e querelas constituíam uma espécie de lei terrena que Ele, certamente, criticava e a respeito da qual promovia um agere contra, para facilitar que seus discípulos, longe de se apegarem a normas humanas e de quererem transformá-las em divinas, esquecendo-se de Deus, subissem, isto sim, das criaturas ao Criador.
Não obstante, em relação à Lei entregue por Ele mesmo a Moisés no Monte Sinai, Nosso Senhor não dava liberdade de seguir ou não, dado ser ela eterna. Os Dez Mandamentos não podem sofrer mudança alguma, são fixos e perenes, e têm de ser praticados até o fim do mundo por todos os homens e mulheres, sem adaptações às conveniências do momento; quanto aos demais preceitos da Lei Mosaica, Ele não veio “para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição” (Mt 5, 17). Foram superados porque “depois que veio a fé [em Jesus Cristo], já não dependemos de pedagogo” (Gal 3, 25). É o que explica Santo Irineu, com muita clareza: “aqueles preceitos que acarretavam servidão e eram apenas sinais foram revogados na liberdade do Novo Testamento. Enquanto os preceitos naturais próprios a quem é livre, e que são comuns a todos, foram reforçados e aumentados, dando aos homens, com largueza, o dom de conhecer a Deus como Pai por adoção, de amá-Lo de todo coração e, sem desvios, de seguir seu Verbo”.10 E comenta ainda o mesmo Santo: “As palavras do Decálogo [...] permanecem entre nós, expandidas e ampliadas, mas não anuladas por ocasião de sua vinda carnal”.11
Continua no próximo post

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