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sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Evangelho XXII Domingo do Tempo Comum – Ano B - Mc 7, 1-8.14-15.21-23

Comentário ao Evangelho XXII Domingo do Tempo Comum – Ano B
Naquele tempo, 1 os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. 2 Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado. 3 Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. 4 Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre. 5 Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” 6 Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo Me honra com os lábios, mas seu coração está longe de Mim. 7 De nada adianta o culto que Me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. 8 Vós abandonais o Mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. 14 Em seguida, Jesus chamou a multidão para perto de Si e disse: “Escutai todos e compreendei: 15 o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior. 21 Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, 22 adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. 23 Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (Mc 7, 1-8.14-15.21-23).
 Onde está o meu coração?
Face à hipocrisia farisaica, o Divino Mestre demonstra que o homem não se define pelas exterioridades, mas sim pelas intenções do coração.
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
I – Qual o comportamento à altura da vida divina?
Todos nós nascemos em pecado, como inimigos de Deus e objeto de sua ira (cf. Ef 2, 3), mas, chamados a obter a posse da visão beatífica, fomos — ao lado dos Anjos — elevados à vida divina. Vida tão superior à simplesmente natural, que a graça — pela qual dela participamos — pertence ao sexto plano da criação, muito acima dos minerais, dos vegetais, dos animais, dos homens e até mesmo dos Anjos. É o próprio Deus quem toma a iniciativa de introduzi-la em nós pelo milagre extraordinário do Batismo que nos faz filhos d’Ele. Quando o sacerdote derrama água sobre a nossa cabeça e diz “Eu te batizo em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”, deixamos de ser meros animais racionais para nos tornarmos entes divinos, com as virtudes da fé, esperança, caridade, prudência, justiça, fortaleza, temperança, e todos os dons do Espírito Santo infundidos na alma.
Na Liturgia do 22º Domingo do Tempo Comum encontramos estímulos, convites e esclarecimentos a respeito desta vida, para podermos merecer chegar à sua plenitude, ao passar do tempo à eternidade.
A vida sobrenatural: dom do “Pai das luzes”
Na segunda leitura (Tg 1, 17-18.21b-22.27) insiste São Tiago: “Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto; descem do Pai das luzes” (1, 17a). Não há dádiva mais perfeita do que esta vida sobrenatural! Três são as criaturas que têm “até certo ponto infinita dignidade”,1 pois Deus não podia fazê-las mais excelentes: Jesus Cristo Homem, Maria Santíssima e a visão beatífica; e esta última já a possuímos em germe, neste mundo, através da graça.
O “Pai das luzes, no qual não há mudança nem sombra de variação” (Tg 1, 17b) porque é o Ser Absoluto, “de livre vontade nos gerou pela Palavra da verdade, a fim de sermos como que as primícias de suas criaturas” (Tg 1, 18). Sim, Ele nos gerou para a vida divina através do seu Verbo, que Se encarnou para que todos tenhamos vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Por isso nos cabe receber com humildade a Palavra de Deus, que é capaz de salvar nossas almas (cf. Tg 1, 21b).

“Todavia” — continua São Tiago — “sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (1, 22); isto é, não basta conhecer a doutrina, é preciso respeitar as leis da vida sobrenatural, aprendendo a nos comportarmos de modo diferente, enfrentando as inclinações que brotam em nós devido ao pecado original, e vencendo-as para alcançar o prêmio prometido. Nisto consiste a prova que todos atravessamos, ao longo de nossa passagem pela Terra. Para mantermos a filiação divina é indispensável que desenvolvamos a vida da graça, cumprindo a Palavra. Para tal, adverte ainda São Tiago, é necessário, “não se deixar contaminar pelo mundo” (1, 27). O mundo, de fato, tem uma visualização carente de sobrenatural.
Por sua vez, o Salmo Responsorial é muito elucidativo, ao perguntar: “Senhor, quem morará em vossa casa e no vosso monte santo habitará?” (Sl 14, 1a). Como se dissesse: quem terá convívio convosco, ó Deus? Quem estará eternamente na vossa companhia? Quem gozará de vossa própria felicidade? Quem Vos verá face a face? Quem participará de vossos bens? E prossegue o salmista: “É aquele que caminha sem pecado e pratica a justiça fielmente” (Sl 14, 2), ou seja, aquele que ama a santidade e a põe em prática.
Para entrar na Terra Prometida, Israel deve abraçar o espírito sobrenatural
Na primeira leitura (Dt 4, 1-2.6-8) encontramos Moisés depois de ter realizado grandes maravilhas pelo poder de Deus. Ele livrara o povo hebreu da escravidão do Egito e, estendendo o seu cajado, dividira as águas do Mar Vermelho para que os israelitas o cruzassem até o outro lado, a pé enxuto (cf. Ex 14, 21-22). Em seguida, ante a tremenda ameaça das tropas egípcias que chegaram para os prender e levar de volta — porque o Faraó se arrependera de os ter deixado partir —, ele levantara novamente o seu braço e as águas se juntaram e deglutiram todo o exército inimigo (cf. Ex 14, 27-28).
Seguiram-se quarenta anos no deserto, durante os quais Moisés tirou água da pedra, Deus fez descer do céu o maná e mandou vir codornizes sobre o acampamento dos israelitas para os alimentar (cf. Ex 17, 1-6; 16, 4-31), bem como outros milagres estupendos. Quatro décadas de educação e aprendizagem para aquele povo, e também de castigo, por terem praticado o mal! Apesar dessas infidelidades, Deus não falta à sua promessa; pelo contrário, Ele a cumpre, entregando-lhes a Terra Prometida.
Chegada a hora de ali entrar, trata-se de o povo retribuir o bem já recebido, assim como aquele que ainda iria receber. No que consiste esta reciprocidade? Eis o ensinamento da leitura: em abraçar o espírito sobrenatural e observar a conduta moral e religiosa prescrita por Deus, com o intuito de estabelecer um relacionamento entre Ele e o povo. Os decretos que o profeta transmite manifestam a superioridade da nação eleita pelo Senhor “perante os povos” (Dt 4, 6) e são, segundo a linguagem do próprio Moisés, “justos” (Dt 4, 8). Sim, porque, como indica São Paulo, esta Lei era um educador para conduzir os hebreus até Nosso Senhor Jesus Cristo e serem justificados pela fé n’Ele (cf. Gal 3, 24).
Sem a Lei de Deus não há participação na vida divina
Ora, o verdadeiro espírito dos preceitos positivos da Lei Mosaica estava sintetizado no Decálogo, explicitação do comportamento que devemos ter para sermos semelhantes ao Criador. Estas simples leis resumem, de modo excelente, no que consiste o exercício da vida divina em nossas almas e nos torna adequados a ela.
Sem a guarda dos Dez Mandamentos não se participa da vida de Deus, pois, a partir do momento em que é cometido um pecado grave, pela transgressão de qualquer deles, perde-se a graça santificante e a inabitação da Santíssima Trindade na alma, voltando esta a ser escrava do demônio. “O pecado mortal é o inferno em potência. É, pois, como um desabamento instantâneo de nossa vida sobrenatural, um verdadeiro suicídio da alma para a vida da graça”.2
Mas a natureza humana é profundamente lógica: quando o homem, arrastado por suas más inclinações, quer praticar o mal, antes mesmo de perpetrá-lo ele inventa uma racionalização para justificar seu ato. E, aos poucos, vai criando outra religião, com uma moral diversa, independente da Lei de Deus. Esta é a tendência que, sob a capa de fidelidade aos ensinamentos de Moisés, veremos retratada no Evangelho deste domingo e desmascarada por Nosso Senhor Jesus Cristo.
II – Divinizaram as leis humanas, e humanizaram as leis divinas
Naquele tempo, 1 os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus.
O Evangelista São Marcos é muito positivo, afirmativo e categórico. Enquanto discípulo de São Pedro, e acompanhando-o amiúde, podia comprovar a maldade dos fariseus que, aliás, já conhecia de sobra, porque também ele era judeu. Por isso empenhou-se em transcrever as discussões de Jesus com eles, quer lhe tivessem sido contadas por São Pedro, quer as houvesse testemunhado. Na cena recolhida pela Liturgia de hoje, ele narra como os escribas e fariseus de Jerusalém — ou seja, aqueles que mais frequentavam o Templo — foram até Nosso Senhor. Não era para se encantarem com Ele que O seguiam; vinham com o objetivo de estudar suas ações e encontrar alguma falha pela qual pudessem condená-Lo.
Tradições humanas que desviavam da Lei de Deus
2 Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado. 3 Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. 4 Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre.

Os escribas e fariseus eram extremamente minuciosos e detalhistas no cumprimento de uma série de costumes antigos, chegando às vezes a exageros ridículos. Estas normas, é preciso dizer, não faziam parte da Lei de Moisés, pois haviam sido transmitidas por tradição, mas, para eles, tinham valor de dogmas, superiores mesmo às da Revelação.
O douto padre Bonsirven assim se estende sobre este ponto: “A lei oral é apresentada no início como a cerca com a qual se circunda a Torá [a Lei de Moisés], para precisar aquilo que nela é muito vago ou muito amplo, e assegurar uma observância mais exata. Esta via, contudo, era muito perigosa: à força de se encher de novas prescrições, a cerca acabava por tornar-se sufocante; [...] as novas precisões, que sem cessar restringem o terreno onde era possível mover-se livremente, as deduções e assimilações infindas que ampliam as obrigações e multiplicam os interditos, submetendo ao preceito os mínimos objetos e introduzindo minúcias que a Lei não previa nem queria, não param de engrossar e elevar a cerca, apertando e amarrando o israelita numa profusão de mandamentos”.3 Em concreto, a origem das prescrições de purificação remontava à exigência divina de que os israelitas não se misturassem com os povos idólatras, para não serem atraídos por suas falsas religiões (cf. Ex 34, 12-16). Aos poucos, todavia, “o que no princípio servira para exprimir a santidade de Deus e de seu povo converteu-se num jugo insuportável, e o que era um meio de proteção veio a ser um laço para as almas”.4
Uma errônea teologia
Com efeito, os fariseus acabaram por inventar uma teologia de “universo fechado”, pela qual dividiam a criação em duas grandes categorias: a primeira era a das coisas puras, aquelas atinentes diretamente ao culto; a segunda, vastíssima, abarcava as demais coisas, tidas por eles como impuras.5 Concepção absolutamente errada, pois implicava em afirmar que Deus houvesse criado só alguns seres que tivessem relação com Ele, e todo o resto fosse autônomo, sem qualquer vinculação com o Criador.6
Por isso consideravam indispensáveis as abluções e os banhos após o contato corporal com tudo o que não fosse puro, pois, a seu ver, o homem ficava manchado. Quem comparecesse, pois, a um enterro e tocasse no defunto, ou mesmo quem atravessasse um cemitério e se encostasse num túmulo, estava obrigado a se purificar.7 Os copos, as vasilhas e as jarras eram lavados por fora, para não poluir as mãos de quem os usasse.8 Tal pormenor constituía um verdadeiro contrassenso, já que, por higiene, estes objetos deviam sobretudo ser limpos por dentro; mas o problema para eles cifrava-se na possibilidade de apanhá-los sem risco de contaminação.
Sob certo aspecto se entende que eles caíssem neste engano, já que o ponto de partida de seu raciocínio era válido. De fato, enquanto os Anjos, puros espíritos, não precisam ver, ouvir, degustar, apalpar ou sentir os odores, porque têm um conhecimento intuitivo, a criatura humana, composta de corpo e alma, adquire o conhecimento através dos sentidos e, portanto, necessita de um símbolo exterior para chegar às conclusões e compreender bem as realidades interiores. Os próprios Sacramentos são constituídos de matéria e forma a fim de serem mais acessíveis à nossa natureza. A matéria do Batismo, por exemplo, é a água — utilizada sempre para limpar —, de maneira que, ao ser derramada sobre a cabeça do batizando, significa e realiza a purificação completa da alma.
Ora, os fariseus haviam exacerbado esta inclinação natural do homem até o inconcebível, e era inevitável que hábitos estabelecidos de modo tão arbitrário, e não por amor a Deus, chegassem ao absurdo. Para citar um deles, no tratado Yadaim, dedicado às mãos, acha-se descrito como efetuar o meticuloso ritual de sua purificação, após tocar “indevidamente” nas coisas impuras. Note-se, entretanto, não se tratar de uma questão de mãos sujas ou limpas, e sim de mãos legalmente impuras segundo os conceitos farisaicos: “As mãos são puras ou impuras até a articulação. Derrama-se a primeira água até a articulação e a segunda mais além, voltando à mão, é puro. Se as duas abluções são feitas mais além da articulação, retornando à mão, é impuro. Se é feita a primeira [ablução] sobre uma mão, e depois, mudando de intenção, sobre as duas mãos, é impuro. Se a primeira [ablução] se faz sobre as duas [mãos], e depois, mudando de intenção, sobre uma só, é puro. Se uma mão está lavada e esfrega-se na outra, é impuro. Se ela se esfrega na cabeça ou na parede, é puro”.9
Jesus não obriga a preceitos humanos
5 Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?”
É curioso reparar como os escribas e fariseus não atacam o Divino Mestre de maneira direta, porque provavelmente Ele observava estas exigências tradicionais, a fim de evitar murmurações contra Si. Chegada a hora da refeição, lavava as mãos e cumpria o preceito, já que era costume adquirido. Ao mesmo tempo, permitia que outros — neste caso, alguns dos Apóstolos — o rompessem, pois estas minúcias e querelas constituíam uma espécie de lei terrena que Ele, certamente, criticava e a respeito da qual promovia um agere contra, para facilitar que seus discípulos, longe de se apegarem a normas humanas e de quererem transformá-las em divinas, esquecendo-se de Deus, subissem, isto sim, das criaturas ao Criador.
Não obstante, em relação à Lei entregue por Ele mesmo a Moisés no Monte Sinai, Nosso Senhor não dava liberdade de seguir ou não, dado ser ela eterna. Os Dez Mandamentos não podem sofrer mudança alguma, são fixos e perenes, e têm de ser praticados até o fim do mundo por todos os homens e mulheres, sem adaptações às conveniências do momento; quanto aos demais preceitos da Lei Mosaica, Ele não veio “para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição” (Mt 5, 17). Foram superados porque “depois que veio a fé [em Jesus Cristo], já não dependemos de pedagogo” (Gal 3, 25). É o que explica Santo Irineu, com muita clareza: “aqueles preceitos que acarretavam servidão e eram apenas sinais foram revogados na liberdade do Novo Testamento. Enquanto os preceitos naturais próprios a quem é livre, e que são comuns a todos, foram reforçados e aumentados, dando aos homens, com largueza, o dom de conhecer a Deus como Pai por adoção, de amá-Lo de todo coração e, sem desvios, de seguir seu Verbo”.10 E comenta ainda o mesmo Santo: “As palavras do Decálogo [...] permanecem entre nós, expandidas e ampliadas, mas não anuladas por ocasião de sua vinda carnal”.11

O espírito do mundo
6 Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo Me honra com os lábios, mas seu coração está longe de Mim. 7 De nada adianta o culto que Me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. 8 Vós abandonais o Mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”.
A resposta de Jesus não significa uma reprovação à praxe de lavar as mãos antes de comer. Isto também nós o fazemos hoje, por higiene, sem nos atermos a uma lei temporal que nos imponha modos de ser mundanos. Se, contudo, houvesse um decreto para assim proceder por amor a Deus, ele seria legítimo.
Aqueles que amam o mundo — como os fariseus — são levados a dar mais atenção aos princípios do convívio social do que à Lei de Deus, porque, na prática, vivem como se Deus não existisse. E, por vezes, certas leis humanas, contrárias à Lei divina, as observam com uma precisão absoluta. Para estas pessoas o fim último da vida se cumpre aqui na Terra e, no fim, a paga que recebem se reduz ao conceito que os demais fizeram a seu respeito.
Nós precisamos cuidar, em nosso cotidiano, de não dar mais importância à opinião dos outros do que à de Deus. Importa-nos, acima de tudo, seu juízo sobre nós! Imensamente séria é sua Lei e transgredi-la acarreta consequências terríveis. Quando alguém infringe uma lei de trânsito é penalizado com uma multa; mas se por infelicidade violar um Mandamento divino, pode ver as portas do Céu se fecharem diante de si e ir para o inferno por toda a eternidade!
O horrível defeito da hipocrisia
Por este motivo Jesus Se levantou contra os fariseus e os recriminou, aplicando-lhes a frase de Isaías: “Este povo Me honra com os lábios, mas seu coração está longe de Mim. De nada adianta o culto que Me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Ou seja, era meramente humano o empenho deles em observar, de forma meticulosa, uma série de regras externas. Apesar de assim agirem por uma suposta razão religiosa e louvarem o Senhor com os lábios, seu coração estava longe d’Ele. Erravam, pois, ao praticar uma devoção de aparência, bastando-lhes aquelas abluções para ficarem satisfeitos e se julgarem livres de qualquer impureza, sem se preocuparem com os vícios que lhes manchavam a alma. Enquanto no coração guardavam tudo aquilo que Jesus vai enumerar mais adiante — “más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades”, entre outros —, eles sustentavam a ideia de que o interior do homem — sobretudo se fosse fariseu — de si mesmo era puro, e supunham encontrar nas exterioridades a tranquilidade de consciência e a solução para encobrir estas falhas de espírito. Por isso o principal título que receberam do Salvador foi o de “hipócritas”!
A hipocrisia é um defeito horrível — muito mais comum do que pensamos! —, pelo qual há uma dissociação entre os ditos e as atitudes de uma pessoa e aquilo que ela pensa ou deseja. O hipócrita se parece com o “pai da mentira” (Jo 8, 44), porque este é justamente o modo de ser do demônio: apresenta-se com palavras atraentíssimas, dando a impressão de querer fazer o bem, mas suas intenções são péssimas. Embora não constem no Evangelho deste domingo, os versículos 9 a 13 tornam ainda mais compreensível este ensinamento do Divino Mestre: “Na realidade, invalidais o Mandamento de Deus para estabelecer a vossa tradição” (Mc 7, 9). De fato, os fariseus chegaram a transformar estas normas, que deveriam visar o sobrenatural, numa espécie de idolatria. Arrancaram os autênticos preceitos morais e criaram uma religião própria, diferente da verdadeira, totalmente desprovida de cunho religioso e separada de Deus, porque se apoiava em ditames mundanos, determinados pela vida social da época. Divinizaram a lei humana; dessacralizaram e humanizaram a Lei divina!
Em seguida Jesus citou um exemplo (cf. Mc 7, 10-13) para mostrar como faziam a distorção da Lei, esvaziando seu conteúdo e falseando os costumes que nela se baseavam: os fariseus, porque eram avarentos, recorriam a um estratagema, de maneira a poder guardar o dinheiro que, em função do Quarto Mandamento do Decálogo, todo filho tem a obrigação de usar para assistir os pais na velhice, contribuindo para a subsistência deles. Em vez de dar aos pais a quantia necessária para seu sustento, os fariseus a consagravam como oferta a Deus e consideravam-se livres daquele dever filial.
Por meio de um enigma, Jesus chama as multidões para Si
14 Em seguida, Jesus chamou a multidão para perto de Si e disse: “Escutai todos e compreendei: 15 o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”.
“Jesus chamou a multidão para perto de Si”, pois ela se tinha afastado e achava-se meio dispersa. Decerto esta dissipação provinha de uma formação religiosa deficiente. Quantas vezes as pessoas se interessam mais por seus problemas concretos, mesmo quando têm o próprio Salvador diante de si!
Para atrair a atenção das turbas, Ele lhes lançou, muito ao estilo oriental, um quase que enigma: “O que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”. É de se supor que logo se levantou um vozerio, uma discussão para tentar descobrir qual o significado daquela frase. No entanto, não a resolveram... Só mais tarde, estando em casa, os discípulos O interrogaram a respeito da parábola, e Jesus lhes explicou aquilo que também eles não tinham compreendido (cf. Mc 7, 17-20).
O homem se define por suas intenções
21 “Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, 22 adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. 23 Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem”.
Nosso Senhor vinha quebrando a mencionada teoria farisaica do “universo fechado”, quando “declarava puros todos os alimentos” (Mc 7, 19), isto é, que todas as criaturas são neutras. A matéria assimilada pelo homem não é impura; pelo contrário, é o homem que torna boas ou ruins as coisas, segundo o uso que delas faz. Por conseguinte, a “fábrica” de impurezas já existe dentro do coração de todo ser humano, porque foi concebido no pecado original e suas inclinações são más. Sem o auxílio da graça ele é um verdadeiro poço de misérias, um feitor de loucuras e de crimes, incapaz, por seu esforço pessoal, de se manter fiel à prática dos Mandamentos, de forma estável.
Esta corrupção depende, sobretudo, das suas intenções, pois se, de um lado, é possível executar uma ação per se santa tendo em mente um desígnio perverso, de outro, pode acontecer que alguém se veja na contingência de presenciar cenas péssimas e por elas não seja tisnado, uma vez que não lhes dê sua adesão. Esta é a razão pela qual não devemos nos perturbar quando, por exemplo, um pensamento desonesto, sugerido pelo demônio, nos vem à cabeça; desde que o coração não consinta nele e o rejeite, fiquemos tranquilos...
A impureza de alma: eis “o pomo da discórdia” nesta discussão entre o Divino Mestre e os fariseus. Jesus demonstra quanto é ridículo imaginar que pelo toque de algum objeto a alma se macule. É claro que se alguém utiliza o corpo para ofender a Deus adquire uma mancha de alma; mas este ato partiu de um mau desejo da inteligência e da vontade, potências da alma, enquanto o corpo foi mero instrumento para fazer o que é ilícito.
III – Estejam os lábios de acordo com o coração!
Deus nos deu uma Lei eterna que gravou em nossa alma; no Sinai nos entregou esta Lei escrita em tábuas de pedra e, por fim, a manifestou ainda visível e viva no próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo de Deus que Se fez carne e habitou entre nós, “para dar testemunho da verdade” (Jo 18, 37), de modo que todos a conhecêssemos perfeitamente.
Entretanto, a partir do momento em que Adão e Eva desprezaram esta Lei, no Paraíso e, na hora da prova, não optaram pela virtude, deixando-se levar pelas atrações do demônio a ponto de cometerem o pecado, a tendência do homem é esquecer a Palavra e a Lei.
Ora, Deus quer de nós uma aceitação plena da Lei imutável e sempiterna, sendo “praticantes da Palavra e não meros ouvintes” (Tg 1, 22); Ele deseja que nosso íntimo esteja inteiramente de acordo com os lábios. Estes devem pronunciar aquilo que transborda do coração, conforme afirmou Nosso Senhor: “A boca fala daquilo de que o coração está cheio” (Lc 6, 45). É bem verdade que nós temos de traduzir em palavras, em atitudes, em gestos, em decoração de ambientes, em cerimonial e na própria pessoa, a doutrina que recebemos como herança. Mas para não cairmos no equívoco farisaico, é preciso primeiro progredir na vida espiritual, transformar a alma e alcançar a máxima união de vias e de cogitações com Nosso Senhor Jesus Cristo; o resto virá como consequência! É Ele quem, por sua graça, há de tornar puro o nosso interior, para que dele saia a bondade e brotem obras Jesus discute com os fariseus - Catedral de Saint Gatien, Tours (França) de justiça.
Se não tivermos meios de dar a Deus uma boa dádiva, à altura de nossos anseios, ofereçamos a Ele o pouco que possuímos, animados, porém, de excelente intenção, com toda a alma... Será como o óbolo da viúva elogiada por Jesus no Evangelho (cf. Mc 12, 41-44): ela lançou só duas moedinhas, quando, no fundo, queria entregar o seu coração!
Como é meu interior?
A Liturgia deste 22º Domingo do Tempo Comum resume-se no seguinte problema: onde está o meu coração? Será que meus lábios louvam a Deus, mas o interior está fora da Lei? Quantas vezes prefiro estar em consonância com o mundo e em oposição a Nosso Senhor? Eu coloco Deus no centro de minha vida ou me ponho a mim mesmo?
Todas as nossas ações se correlacionam com nosso destino eterno e com nossa vocação sobrenatural; por isso somos convidados a ser íntegros diante de Deus, amando-O, respeitando suas Leis com elevação de espírito, fervorosos em relação à prática da santidade. Peçamos a Maria Santíssima que nos obtenha graças extraordinárias para que nossos corações sejam chamejantes e os lábios transbordem do que canta e proclama o coração!
1 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.25, a.6, ad 4.
2 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la perfección cristiana. Madrid: BAC, 2006, p.286.
3 BONSIRVEN, SJ, Joseph. Le judaïsme palestinien au temps de Jésus-Christ. 2.ed. Paris: Gabriel Beauchesne, 1934, t.I, p.265-267.
4 TUYA, OP, Manuel de; SALGUERO, OP, José. Introducción a la Biblia. Madrid: BAC, 1967, v.II, p.508.
5 Cf. KELIM. M 17, 14. In: BONSIRVEN, SJ, Joseph (Ed.). Textes rabbiniques des deux premiers siècles chrétiens. Roma: Pontificio Istituto Biblico, 1955, p.665.
6 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.103, a.5.
7 Cf. OHALOT. M 1-3. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux premiers siècles chrétiens, op. cit., p.672-674.
8 Cf. BERAKHOT. Y 12a; HAGIGÁ. M 3, 1; ZEBAHIM. B 11, 7-8; KELIM. M 25, 6-9. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux premiers siècles chrétiens, op. cit., p.107; 283; 573; 668.
9 YADAIM. M 2, 3. In: BONSIRVEN, Textes rabbiniques des deux premiers siècles chrétiens, op. cit., p.707.
10 SANTO IRINEU DE LYON. Adversus Hæreses. L.IV, c.16, n.5: MG 7, 1018.
11 Idem, n.4.


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