Comentários ao Evangelho 23º Domingo do Tempo Comum – Ano B – Mc 7,31-37
Mons João Clá Dias
Naquele tempo, 31Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por
Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole.
32Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram
que Jesus lhe impusesse a mão. 33Jesus afastou-se com o homem, para fora da
multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva
tocou a língua dele. 34Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer
dizer: “Abre-te!”
35Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou
a falar sem dificuldade. 36Jesus recomendou com insistência que não contassem a
ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam. 37Muito
impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: Aos surdos faz
ouvir e aos mudos falar”. ( Mc
7,31-37)
Uma surdez pior que a surdez
O milagre da cura do surdo-mudo nos alerta contra a perigosa
perspectiva de uma surdez muito pior que a física: o fechamento de nossas almas
à voz de Deus.
I — A PERSPECTIVA CRISTÃ NO ANTIGO TESTAMENTO
As maravilhas aprendidas por
uma criança nas aulas de catecismo de hoje não foram nem sequer sonhadas no
Antigo Testamento pelos maiores patriarcas, reis ou profetas. De fato, sem a
revelação feita por Nosso Senhor Jesus Cristo, eles jamais poderiam conceber,
por exemplo, a existência da Santíssima Trindade — mistério inatingível pela
inteligência humana e só cognoscível a partir do testemunho do próprio Deus. O
mesmo se diga do caudal de graças em profusão trazido por Nosso Senhor, desde o
momento de sua Encarnação, e que se espalharia por todo o gênero humano, a
ponto de se tornar possível levar uma vida semelhante à do Paraíso Terrestre,
embora, é claro, sem os benefícios físicos nem outros tantos dons perdidos pelo
pecado de nossos primeiros pais.
Não é descabido, portanto,
afirmar terem sido estes grandes homens cegos para aquilo que uma criança de
nossos dias vê, surdos para oque ela entende, e até paralíticos, porque não conseguiam
realizar as obras de que somos capazes depois da Redenção operada pelo Divino Cordeiro.
Cegos, surdos e paralíticos de Deus...
Uma salvação sobretudo espiritual
Ora, tais deficiências lhes
impediam ainda de penetrar na mais profunda realidade expressa nas profecias e
outros textos sagrados, redigidos sob a inspiração do Espírito Santo. Com efeito,
lendo as Escrituras, podemos considerar toda afirmação e descrição no seu
sentido literal, ou analisá-las debaixo de um ponto de vista espiritual.
No trecho do Livro de Isaías,
apresentado neste domingo como primeira leitura (35, 4-7a), o profeta transmite
a voz de Deus anunciando vingança e recompensa: “Dizei às pessoas deprimidas:
‘Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a
recompensa de Deus; é Ele que vem para vos salvar” (35, 4). Evidentemente,
Isaías está falando, sobretudo em um sentido espiritual, a respeito dos efeitos
da vinda do Messias: uma tal infusão de graças, uma Redenção tão superabundante
que vingaria o pecado e toda a sanha de satanás contra a humanidade, de maneira
que o ânimo para praticar o bem se tornaria fortíssimo e desapareceriam os
temores. Esta salvação não consiste em livrar de um ataque militar, de uma
situação de pagamento de impostos, ou de algo semelhante, como muitos judeus
esperavam, mas, isto sim, em evitar o inferno ou uma eternidade no Limbo, para
onde iriam aqueles que morressem na justiça, se não houvesse a Redenção.
Jesus: médico dos corpos, mas em especial das almas
Usando figuras um pouco
dramáticas, Isaías continua: “Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão
os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos
mudos” (35, 5-6). Igualmente, esta profecia não se limita a seu significado
concreto, pois Nosso Senhor passou curando todas as enfermidades encontradas
pelo caminho, fazendo uma ligação inteira entre a doença corporal e a moral.
Dizia Ele: “Vai, a tua fé te salvou”. (Mc 10, 52); “Eis que ficaste
são; já não peques, para não te acontecer coisa pior” (Jo 5, 14); ou “Vai e não
tornes a pecar” (Jo 8, 11).
Todas estas curas têm também um
aspecto simbólico e nelas o maior milagre não é tanto o físico como o
espiritual. Se toda a humanidade, formando uma fila em volta da Terra, tivesse
seus braços cortados e um Anjo fosse recolocando os braços de cada um, não
seria um milagre tão grande quanto o que se opera quando alguém recebe a absolvição
de um pecado mortal. Porque no confessionário não se trata de restituir um
membro ao corpo, mas de fazer com que a vida divina, expulsa pelo pecado,
reanime aquela alma.
Com base nestas considerações,
o Evangelho do 23 Domingo do Tempo Comum nos põe numa perspectiva lindíssima e
muito apropriada para nosso proveito espiritual.
II— A CURA DO SURDO-MUDO
Naquele tempo, 31 Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por
Sidônia e continuou até o Mar da Galileia, atravessando a região da Decápole.
32 Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus
lhe impusesse a mão.
Quando se deu este fato, Nosso
Senhor estava em terras pagas, nas quais, em princípio, poderia ter mais
sossego do que em Israel, onde era invariavelmente acompanhado por multidões.
Porém, a estas alturas de sua vida pública, já se espalhara sua fama de
taumaturgo e, em qualquer lugar, seria procurado por muitos necessitados. Por
esta razão, alguns homens levaram até Jesus um surdo-mudo.
O uso do verbo “trouxeram”
torna patente não ter chegado o doente por si até o Divino Mestre, implorando
ajuda. Foram os companheiros dele que pediram a Nosso Senhor para impor-lhe as
mãos, gesto que era, desde o Antigo Testamento, empregado para impetrar a cura
de um doente. Embora fosse raro, os sacerdotes tinham ainda o
poder de curar nos tempos de Jesus. Ele, entretanto, não seguirá o mero costume
dos judeus, mas tomará outras atitudes.
Um cuidadoso modo de infundir a fé
33ª Jesus afastou-Se com o homem, para fora da multidão; em seguida colocou
os dedos nos seus ouvidos...
Como aqueles que pediram pelo surdo-mudo
ouviam e falavam, isto é, tinham fé, Nosso Senhor ia atendê-los. Todavia,
desejava não só remediar a surdez, mas também infundir a fé na alma do doente.
Jesus poderia ter curado à distância,
como fez com o servo do centurião romano, quando este Lhe disse: “Senhor, eu
não sou digno de que entreis em minha casa. Dizei uma só palavra e meu servo
será curado” (Mt 8, 8). E Ele respondeu: “Em verdade vos digo: não encontrei
semelhante fé em ninguém de Israel. [...] Vai, seja-te feito conforme a tua fé”
(Mt
8, 10.13). Na mesma hora, o servo levantou-se da cama. Assim, também com o
surdo-mudo bastaria uma palavra de Jesus; contudo, como não ouvia, Ele quis que
o homem sentisse fisicamente quem o estava curando. Por isso, Nosso Senhor toca
com os dedos os ouvidos do doente, para ficar patente que a força vinha unicamente
d’Ele. De fato, se estes ou aqueles Santos foram taumaturgos extraordinários,
ultrapassando as leis da natureza, foi em virtude de uma participação no poder
divino, o qual só Nosso Senhor Jesus Cristo possui em plenitude, por ser Deus.’
33b... cuspiu e com a saliva tocou a língua dele. 34 Olhando para o Céu,
suspirou e disse: «Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te! 35 Imediatamente seus
ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade.
Nosso Senhor tocou com a própria saliva...
E um modo, à primeira vista,
prosaico entre criaturas concebidas no pecado original. Sem embargo, com Jesus
não acontece o mesmo, porque tudo n’Ele é santidade. Trata-se da saliva da boca
de Deus... Pelo que se pode medir o tamanho do privilégio de haver algo que passe
d’Ele para este pobre coitado, manifestando-lhe de quem provinha a cura.
Isto já seria suficiente. No
entanto, é curioso notar ter sido só depois de Jesus dizer “Efatá! — Abre-te!”
que se abrem os ouvidos e se solta a língua do homem. Desta forma, o Mestre
dava a entender ao surdo que Ele estava pedindo aquela força do alto. Tornam-Se
claras, neste ato, as duas naturezas em Nosso Senhor: a humana e a divina. Ele,
enquanto Homem, põe os dedos nos ouvidos do surdo, suspira, geme e fala; mas,
como Deus, é Ele quem cura.
O dever de nunca falar de si
36 Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas,
quanto mais Ele recomendava, mais eles divulgavam. 37 muito impressionados, diziam: “Ele
tem feito bem todas as coisas: Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar .
Jesus sabia perfeitamente desde
toda a eternidade, que eles não iriam obedecer a esta recomendação. Então, qual
foi a razão de tê-la dado? Estaria o Homem-Deus dizendo algo inútil? Nada do
que fez Nosso Senhor foi em vão. Ele advertiu para não comentarem, a fim de
servir de exemplo ad perpetuum — em especial para todos os orgulhosos — de que
quando alguém realiza uma obra de Deus, com a ajuda da graça, não deve chamar a
atenção sobre si e colocar-se no centro dos acontecimentos, mas ressaltar o
Senhor. Ademais, nos ensina a nunca pedir aos outros que façam propaganda a nosso
respeito.
As pessoas, pelo contrário, a
despeito da recomendação do Salvador, divulgavam a ação de Deus porque estavam
tomadas de contentamento e de grande admiração pelo fenômeno presenciado.
III — A SURDEZ ESPIRITUAL, DOENÇA TERRÍVEL
Voltando S nossas considerações
iniciais, que
focalização devemos ter em mente, no tocante ao Evangelho deste domingo?
Devemos analisá-lo
no sentido literal? É evidente, pois este milagre nos oferece um fundamento para
nossa fé. Sim, Nosso Senhor concedeu a audição àquele homem e a facilidade no
uso de sua
língua, com o intuito de demonstrar ser Ele Deus e de nos preparar para o Reino vindouro.
Não obstante, não é o único
mirante para interpretar o ocorrido. Cabe-nos ver também, neste episódio, uma significação
espiritual que deve pautar nosso comportamento.
O Divino Mestre quis deixar
patente, para os séculos futuros, ter vindo Ele trazer o remédio para a surdez
e o mutismo espiritual característicos do Antigo Testamento. Porém, não podemos
nos esquecer de que estas doenças espirituais se agravaram no mundo moderno.
Deus fala conosco a todo momento
Deus entra em contato conosco o
tempo inteiro, pois Ele jamais abandona sua criatura e tem verdadeiro empenho
em dirigir-Se a ela dos mais diversos modos. Por um lado, através da criação:
tudo o que existe nos fala de Deus. Até mesmo seres na aparência
insignificantes, como uma formiguinha fazendo um enorme esforço para carregar uma
folha, nos provam a existência do Deus que tirou do nada as criaturas e as sustenta
a cada instante.
Continua no próximo post
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