Comentários ao
Evangelho 3ºDomingo do Advento – Lc 3, 10-18 – Ano C
Naquele tempo, 10 as multidões
perguntavam a João: "Que devemos fazer?" 11 João respondia:
"Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça
o mesmo!"
12 Foram também para o batismo
cobradores de impostos, e perguntaram a João: "Mestre, que devemos
fazer?" 13 João respondeu: "Não cobreis mais do que foi
estabelecido". 14 Havia também soldados que perguntavam:
"E nós, que devemos fazer?" João respondia: "Não tomeis à força
dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações; ficai satisfeitos com o vosso
salário!"
15 O povo estava na expectativa e
todos perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias. 16 Por isso,
João declarou a todos: "Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais
forte do que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias.
Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. 17 Ele virá com a pá na mão:
vai limpar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará
no fogo que não se apaga". 18 E ainda de muitos outros modos, João
anunciava ao povo a Boa Nova. Lc 3, 10-18
‘Alegrai-vos”, mas... como?
No
dia em que a Liturgia Católica oferece ao fiel uma pausa jubilosa em meio à
penitencia do período de Advento, o Precursor nos indica o “que devemos fazer”
para encontrar a verdadeira alegria, tão ansiada por toda criatura.
UM REMANSO DE ALEGRIA EM MEIO À
PENITÊNCIA
A
Liturgia da Igreja reúne sucessivamente, ao longo do ano, os mais variados
sentimentos: a tristeza na Semana Santa; o gáudio transbordante, porém cheio de
temperança, na Ressurreição; a esperança durante o período do Tempo Comum; o
júbilo festivo nas grandes solenidades. Em certo momento ainda, nos deparamos
com uma manifestação — quiçá uma das mais acentuadas dentro da Liturgia — de
conforto e felicidade em meio à penitência. Essa é a nota característica de
dois domingos únicos no ano: o 4º Domingo da Quaresma, que leva o título de Lætare, e
o 3º Domingo do Advento, designado pelo nome de Gaudete. Neste
último, sobre o qual refletiremos, a Igreja abre um parêntese na ascese e na
preocupação constante de uma conversão — atitudes próprias à época do Advento e
preparativas para a vinda de Nosso Senhor — para tratar da alegria,
infundindo-nos novo ânimo.
“Alegrai-vos sempre no Senhor!”
Gaudete, primeira palavra da antífona de
entrada da Missa do dia, significa “alegrai- vos”, e é extraída da epístola de
São Paulo aos filipenses: “Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito:
alegrai-vos. [...] 0 Senhor está próximo!” (F14, 4-5). Com efeito, a esperança
no nascimento de Jesus deve ser acompanhada de sinceros desejos de mudança de
vida. Estas moções interiores precisam, no entanto, de um estímulo, e é
justamente o que recebemos neste 3º Domingo de Advento: as flores voltam a
ornar os altares, os instrumentos tornam a tocar durante a Celebração
Eucarística e os paramentos se tingem de suave róseo para simbolizar a
exultação e a ideia de um descanso. Toda a Liturgia, inclusive as leituras e
orações, está centrada no gáudio, porque nossa Santa Religião não caminha para
a tristeza nem nos conduz para uma vida de eternos sofrimentos, mas, pelo
contrário, nos abre a perspectiva de um futuro feito de júbilo e consolação.
Só
em vista dessa felicidade tem sentido estarmos dispostos a sofrer, conforme nos
explica o mesmo Apóstolo: se não fosse a Ressurreição de Nosso Senhor, vã seria
nossa fé (cf. I Cor 15, 14). A Ressurreição de Cristo é a promessa da nossa
própria ressurreição e, portanto, do nosso gozo eterno. Qual seria o valor de
todo o esforço feito durante a vida, se não houvesse a garantia final de um
prêmio, de uma eternidade feliz? Sem este incentivo nós desanimaríamos. Assim
sendo, toda a nossa atenção deve-se concentrar num só ponto: em determinado
momento estaremos no convívio com Deus!
Tal
é o empenho da Liturgia deste domingo: encher-nos de gáudio em vista do futuro.
Devemos, então, considerar o Evangelho partindo da perspectiva desse júbilo
sobrenatural, fundado no fato de sermos filhos de Deus e de termos a promessa
de uma eternidade junto a Ele, se perseverarmos nas vias do bem, até o fim.
Uma Liturgia pervadida pela alegria
A
primeira leitura proclama o fim da profecia de Sofonias: “Canta de alegria,
cidade de Sião; rejubila, povo de Israel! Alegra-te e exulta de todo o coração,
cidade de Jerusalém! O Senhor revogou a sentença contra ti, afastou teus
inimigos; o rei de Israel é o Senhor, ele está no meio de ti, nunca mais
temerás o mal. Naquele dia, se dirá a Jerusalém: ‘Não temas, Sião, não te
deixes levar pelo desânimo! O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, o valente
guerreiro que te salva; ele exultará de alegria por ti, movido por amor;
exultará por ti, entre louvores, como nos dias de festa” (Sf 3, 14-18a).
Embora
seja este um profeta de tragédias e denúncias, esta passagem é um prenúncio de
contentamento e consolo, pois quem seriamente considera as maravilhas do
futuro, mesmo enfrentando grandes sofrimentos, está sempre cheio de alegria.
Por isso, quando um bom católico é atingido por uma doença ou passa por algum
desastre, sabe mostrar uma resistência e uma resignação fora do comum, pois
conhece Alguém acima dele — Nosso Senhor Jesus Cristo —, que sofreu
incomparavelmente mais, a fim de proporcionar-lhe a felicidade extraordinária
de viver na eternidade junto d’Ele.
Também
a segunda leitura — a mencionada carta de São Paulo — confirma esta exultação,
ao dizer: Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito, alegrai-vos. Que a vossa
bondade seja conhecida de todos os homens! O Senhor está próximo!” (Fi 4, 4-5).
O
Apóstolo das Gentes escreveu esta epístola quando se encontrava na lúgubre
prisão onde fora encarcerado, em Roma (cf. Fi 1, 7.13.17). A História nos
mostra quão inumanos eram os cárceres de então. Segundo Holzner, “a Antiguidade
Cristã está cheia de protestos acerca dos maus tratos e das péssimas condições
de vida a que se submetiam os prisioneiros, bem como do terrível estado em que
se encontravam as prisões romanas. [...] Os próprios romanos consideravam a
pena de prisão como um terrível sofrimento, cruciatus immensus, e
as queixas relativas à elevada mortalidade dos prisioneiros não tinham fim”.1 Entretanto,
mesmo nessa situação Paulo exorta: “alegrai-vos”. Seu coração está
transbordante de júbilo e, em circunstâncias tão adversas, tal contentamento não
pode ser natural, de carácter mundano ou carnal, mas divino, oriundo do alto,
penetrando até o fundo do coração e capaz de passar por cima de qualquer
sofrimento. Absolutamente nada o fazia estremecer: “Não vos inquieteis com
coisa alguma” (Fl 4, 6).
Esse
é o dever de todo batizado. Temos, como ninguém, a possibilidade de fazer o
bem, pois no Batismo recebemos a infusão de todas as virtudes e dons do
Espírito Santo, como um maravilhoso organismo sobrenatural que, movido pela
graça atual, nos permite realizar atos meritórios. Por esse motivo devemos ter
a compenetração de que quando praticamos uma obra boa, não o fazemos por nossa
própria natureza decaída, mas pela ação da graça, tesouro depositado em nós
pelo próprio Deus, razão do gáudio sobrenatural que sentimos.
Diante da aproximação do Salvador:
alegria.., e conversão!
Por
tudo isso, ante a proximidade do nascimento de Nosso Senhor, a Igreja deseja
para os fiéis a degustação — um tanto antecipada — das consolações, fervores e
toques da graça própria às doçuras da festa do Natal. Neste 3º Domingo, portanto, uma nova etapa se abre no Advento: o 1º Domingo fez uma clara
referência à vinda do Salvador; o 2º tornou ainda mais expresso e aberto o
mesmo anúncio; e agora se afirma, pela pena de São Paulo, “O Senhor está
próximo!”.
Ora,
se a razão pela qual nós devemos nos alegrar é o nascimento de Jesus, temos de
fundamentar esse contentamento no cumprimento da Lei de Deus, no desejo
contínuo de uma transformação interior. O Evangelho desta Liturgia projeta,
mais uma vez, a profética figura do Precursor, chamando todos para isso.
A CONVERSÃO EXIGE GESTOS CONCRETOS
São João vinha
preparando os caminhos do Senhor mediante a pregação de uma mudança de vida, O
impacto produzido por sua misteriosa figura e por suas palavras ardentes
atraíra multidões que lhe acorriam ao encontro. Centralizar a atenção de
muitos, pondo em movimento paixões religiosas e políticas era fácil. Sem
embargo, o enviado de Deus possuía uma ambição mais alta. Sua pregação devia
atingir o âmago das almas, movendo a vontade e despertando as consciências.
Diante de sua proposta, apresentavam-se diversas situações que evidenciavam uma
grande preocupação de querer segui-lo, pois seus ouvintes estavam à procura da
felicidade. Para poder levar adiante essa boa disposição, todavia, era preciso
uma metanóia — mudança de mentalidade —, uma renúncia aos próprios
preconceitos, Vícios e paixões desregradas. Como afirma Maldonado: “Um bom
sinal de se ter tirado fruto do auditório é que venham ao pregador com a
consciência inquieta e agitada, para consultar sobre sua salvação! “2 Por isso, a todos esses São João haveria
de mostrar como deveriam viver.
Na generosidade está a verdadeira alegria
Naquele tempo, 10 as
multidões perguntavam a João: “Que devemos fazer?” ‘João respondia: “Quem tiver
duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo!”
O austero
reformador suavizava suas palavras quando pregava aos humildes sinceramente
sedentos de conversão, e seus conselhos respiravam bondade, conforme vemos
neste trecho. Contudo, terão aqueles judeus observado os ditames de São João
Batista, limitando o seu sentido apenas a repartir vestes e comida aos que se
encontravam delas desprovidos? Se esta divisão de bens fosse o único objetivo
do Profeta asceta, até para os fariseus teria sido fácil seguir o Precursor!
Tais recomendações não devem, pois, ser tomadas tão só ao pé da letra. Segundo
observa o padre Maldonado, o Precursor indicava “uma espécie de caridade em
todo o seu gênero, ou seja, com todos os deveres desta virtude. [...]
Recomenda-se, em geral, a caridade para com o próximo, propondo-a como sendo
uma síntese do caminho para a salvação”.3 Devia,
então, ser subentendida por eles a necessidade de dotar suas vidas de uma nova
perspectiva, saindo de si mesmos e sem nunca se apegar aos bens materiais.
Todo o necessário
para cada um, para nossa família ou comunidade, pode ser usado segundo o
próprio beneplácito e de forma totalmente legítima, porém nunca para
satisfazermos o egoísmo. Se Deus nos concedeu o instinto de sociabilidade, e
acima deste a lei moral e a graça, é preciso estar com uma preocupação
primordial de fazer o bem aos outros, sem acepção de pessoas. Essa disposição
de alma, de contínuo e generoso desvelo com o próximo, torna nossas almas
transbordantes de alegria.
Atrás de uma profissão, egoísmo camuflado
12 Foram também
para o batismo cobradores de impostos, e perguntaram a João: “Mestre, que
devemos fazer?” 13João respondeu:
“Não cobreis mais do que foi estabelecido”.
Alguns ouvintes de
São João quiseram esclarecer o modo de proceder em seu caso particular: os
cobradores de impostos. Naqueles tempos remotos, não existia para esta classe
de profissão a rigidez de uma legislação fiscal semelhante a nossos dias e, em
consequência, uma avaliação exata sobre a quantidade devida ao Estado. Em
grande medida isso dependia da vontade do cobrador, que podia definir a quantia
a ser paga pelo contribuinte. Na realidade, ele devia reger-se por critérios
prévios, embora com certa frequência fossem acrescidos à cobrança justa do
imposto outros encargos, os quais acabavam por ficar em seu próprio bolso e não
no tesouro público... Com isso, os cobradores de impostos prejudicavam os
outros em benefício próprio.4
Tal atitude
significava um egoísmo dissimulado no exercício da profissão, pois, ao invés de
terem a Deus como o centro de suas vidas e de seus atos, servindo ao bem comum
com honestidade, preferiam impor uma pesada carga fiscal, cobrando a mais em
seu favor. O Precursor lhes ensina o mesmo princípio geral dado às multidões,
referente ao dever de caridade para com os outros, aplicado ao caso concreto:
não cobrar mais do que o estabelecido, pois isto constituirá uma injustiça.
Como assevera o Cardeal Gomá y Tomás, “o Batista não exigia deles mais do que o
cumprimento de seu oficio dentro da mais estrita justiça; não lhes impunha,
como faziam os fariseus com todo o mundo, cargas insuportáveis”.5
O vício de se aproveitar do exercício da autoridade em benefício
próprio
14 Havia também soldados que perguntavam: “E nós, que devemos
fazer?” João respondia: “Não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas
acusações; ficai satisfeitos com o vosso salário!”
Os soldados eram
“gente assalariada, recrutada ordinariamente entre os vagabundos, bandidos,
fugitivos da casa paterna”,6 influenciados
pelo rude e, com frequência, desmoralizado ambiente no qual recebiam a formação
militar, e tantas vezes expostos a exercer, em inúmeras ocasiões, o roubo e o
abuso da autoridade, sem nenhum tipo de coibição superior. Recomendava-lhes
João a doçura e a calma, proibindo a violência injusta e convidando-os a se
contentar com o magro soldo que tanto desejavam engrossar por meio de
censuráveis rapinas, aconselhando-os, também, ao estrito cumprimento do dever
em favor da ordem estabelecida e do bem comum. A esse propósito, aponta com
precisão Santo Agostinho: “A milícia não proIbe fazer o bem, mas a malícia.
[...] Se os soldados fossem assim, [honestos], seria ditoso até o próprio
Estado”.7
Pelo que vemos por
esses exemplos recolhidos no Evangelho — sem dúvida, muitos mais devem ter sido
os casos de consciência resolvidos e as orientações dadas pelo Precursor —, São
João Batista tinha tato psicológico e discernimento dos espíritos, além de uma
arte suprema que harmonizava a clarividência à justiça e à caridade. Sabia
dizer uma palavra oportuna e exata a todos, para conduzi-los à conversão, com a
autoridade moral característica daqueles que vivem na segurança da virtude e
sabem nela encontrar a felicidade possível nesta terra de exílio. Na verdade,
João respondia com simplicidade “a todo tipo de pessoas que lhe perguntasse:
fazei vosso trabalho com justiça. E essa é, de fato, a única resposta
verdadeira: continuai vivendo com autenticidade, com justiça e preocupando-se
com os demais. Por isso, o cristão deve estar sempre alegre e sua serenidade
deve ser conhecida por todos os homens”.8 No
exato cumprimento da nossa obrigação consiste a prática da virtude.
O impacto produzido pelo Batista
15 O povo estava
na expectativa e todos perguntavam no seu íntimo se João não seria o Messias.
A retidão de São
João, considerado um verdadeiro luminar em meio à notória decadência moral,
religiosa e política do povo eleito, produzia no fundo da alma de seus
seguidores o bem-estar decorrente da sincera paz de consciência, e logo seu
prestígio começou a aumentar. Afinal, uma voz desinteressada substituía, sem
medo nem fraqueza, os erros dos poderosos. A opinião pública se inclinava, com
facilidade, diante de um homem devorado pelo amor ao bem, e ele aparecia a seus
olhos, cada vez mais, investido de uma autoridade vinda do próprio Deus.
Assim, não demorou
muito para o povo israelita imaginar ser o Batista aquele Messias esperado
pelas almas retas como a solução para a situação na qual viviam. Contribuía
também para isso, entre outros fatores, o conhecimento geral de terem sido
completadas as setenta semanas de anos da profecia de Daniel (cf. Dn 9, 24), a
crescente insatisfação comum pelo domínio estrangeiro, ao qual se acrescentava
a profecia sobre o cetro de Judá (cf. Gn 49, 10), e a vaga lembrança dos
misteriosos acontecimentos ocorridos em Belém e Jerusalém, trinta anos antes.
Se João não fosse
uma alma despretensiosa e cheia de desejo de restituir tudo a Deus, esse era o
momento propício de se autoprojetar dentro das estruturas sociais judaicas da
época, atribuindo a si uma aura de grandeza — a qual já possuía naturalmente
perante todos — e atraindo as atenções para si mesmo, deixando de lado quem ele
deveria anunciar. Se agisse desse modo não seria mais distinguido como meio,
precursor ou profeta, mas como fim único e exclusivo. Muito pelo contrário,
compenetrado da elevada missão a ele confiada pela Providência, a situação
punha em realce sua ilibada humildade.
Sempre apontava para Aquele a quem precedia
16 Por isso, João
declarou a todos: “Eu vos batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do
que eu. Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas sandálias. Ele vos
batizará no Espírito Santo e no fogo”.
Aquela
personalidade, tão impactante, conclamava todos para um batismo de conversão,
simbolizado pela imersão nas águas do Jordão. Esse mesmo homem anunciava a
vinda de alguém mais forte do que ele... Como seria isso possível?! Haveria
alguém capaz de ultrapassar o próprio Batista, o inquietador das consciências,
o ascético Profeta?... E-nos fácil imaginar a interrogação surgida na mente das
pessoas, ao pensar em alguém superior àquele que até consideravam como Messias.
Para frisar de
forma mais acentuada esse contraste, porém, o Precursor recorre a uma figura de
insuperável eloquência. Desamarrar a correia das sandálias era, naquele tempo,
função dos menos qualificados entre os servos, O habitual meio de transporte
daquela época era o próprio pé, protegido apenas pela exígua cobertura da
sandália, exposto a sofrer todas as durezas e sujeiras dos caminhos. Ao chegar
a qual quer lugar, era comum presenciar a cena de um escravo retirando o
calçado de alguém para limpá-lo, enquanto os pés eram lavados e até perfumados.
Tal imagem, presente no cotidiano de todos, é levantada por São João para res
saltar a infinita distância que o separava do verdadeiro Messias, professando
em seu interior profundos sentimentos de total sub missão e devoção, quase
rezando: “Na realidade, eu não mereço contar-me entre o número de seus escravos
— nem sequer entre os seus mais ínfimos escravos —, nem desempenhar a parte
mais humilde de seu serviço’. Por isso ele não só falava simplesmente de sua
sandália, mas da correia de sua sandália, o que parecia o último extremo a que
se podia chegar”.9
Esse adorável
Redentor, a quem o Batista precedia, deveria trazer, com toda propriedade, o
verdadeiro Batismo, já não simbólico nem penitencial, mas transformante, pela
acção do Espírito Santo. Com efeito, enquanto a água lava o corpo, a alma é
purificada de seus pecados pela ação do Espírito, da mesma forma como, em
contato com o fogo, derrete-se o ouro para separá-lo da ganga que o macula. E o
que afirma Fillion: “Com isso, demonstrava João a máxima inferioridade de sua
pessoa e de seu batismo. A água apenas lava o exterior, a face ou a superfície;
o fogo do Espírito Santo penetra até o fundo dos corações para limpá-los.
Somente o Batismo conferido em nome do Messias devia produzir a verdadeira
remissão dos pecados”.10
O Messias vem trazendo o prêmio e o castigo
17 “Ele virá com a pá na mão: vai limpar sua eira e recolher o
trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará no fogo que não se apaga”. 18E ainda de muitos outros modos, João
anunciava ao povo a Boa-nova.
O Evangelista
procura destacar, nestes últimos versículos, a ideia de prêmio e de castigo,
sempre presente nos anúncios feitos pelo Batista a respeito do futuro Messias,
bem como a necessidade de mudança de vida. Com uma linguagem impactante para
aquelas multidões, revelava João alguns dos divinos atributos do Salvador, com
traços reconfortantes para uns e terríveis para outros. Para os que se
assemelhassem ao bom grão, tais palavras teriam a suavidade de um bálsamo; mas,
para os que a consciência acusava implacavelmente de ter a inutilidade da palha
seca, a expectativa de sua chegada apresentava-se ameaçadora. Como diz São João
Crisóstomo, “se permaneceis trigo puro, por mais que vos assalte a tentação,
nenhum mal sofrereis por sua ação. Tampouco as rodas do trilho com seus dentes,
na eira, cortam o trigo. Porém, se vierdes a cair na fraqueza da palha, não só
sofrereis nesta vida males irremediáveis, ao serdes esmagados por todo o mundo,
mas logo vos esperará um castigo eterno”.’11
Mais uma vez, o
Precursor deixava patente a necessidade da abertura das almas para uma
constante e eficiente conversão da vida concreta de cada um, único caminho para
a verdadeira felicidade. Alegria eterna ou tormento sem fim: eis a inevitável
escolha daquelas multidões que acorriam ao encontro de São João, eis a terrível
opção oferecida de modo tão evidente a nós, dois mil anos depois...
A ALEGRIA ESTÁ AO NOSSO ALCANCE
Ter sempre em vista
a própria ressurreição, apesar de conhecer perfeitamente a desintegração dos
corpos, depois de enterrados e transformados em poeira; ter uma esperança de, post mortem,
entrar num convívio eterno com Deus, depois de ter recuperado o mesmo corpo em
estado glorioso para no Céu gozar da felicidade eterna; aí está o que nos dá
força e coragem. Então, por que correr atrás de alegrias onde elas não existem?
A insubstituível felicidade da boa consciência
Inúmeras vezes
ignoramos ou nos esquecemos de que a perda da inocência batismal constitui o
maior prejuízo da vida. Significa perder o maior tesouro a nós confiado pelas
dadivosas mãos da Providência, pois, perdida esta inocência, logo as más
inclinações se manifestam com mais veemência e é comum as quedas se sucederem,
podendo inclusive chegar a alma à triste situação apontada por Nosso Senhor no
Evangelho: “Todo homem que se entrega ao pecado, torna-se seu escravo” (Jo 8,
34).
De fato, quando
cometemos a infelicidade de cair no pecado, estamos enganosamente à procura de
alguma felicidade decorrente de um prazer, o qual julgamos ser infinito e
eterno. Tal prazer, entretanto, é sempre fugaz e submerge nossa alma na
frustração. O natureza débil! Corres atrás de um vazio pensando haver
encontrado o absoluto, vais à procura da alegria onde ela não se encontra! Com
propriedade afirma Santo Agostinho: ‘Alegrar-se na injustiça, alegrar-se na
torpeza, alegrar-se nas coisas vis e indecorosas.., em tudo isso cifra o mundo
sua alegria; em tudo isso que não existiria se o homem não quisesse. [...] A
alegria do século consiste na maldade impune. Entregar-se à dissolução dos
homens, fornicar, divertir-se nos espetáculos, embriagar-se, manchar-se de
torpezas sem nenhum contratempo: eis aqui a alegria do mundo. Mas Deus não
pensa como o homem, e uns são os desígnios divinos, outros os humanos”.
Na deliberação de
abraçar o pecado nos afastamos da verdadeira e insubstituível alegria da boa
consciência, que nenhuma fortuna, nenhum prazer carnal, nenhum orgulho
satânico, nenhuma glória mundana pode oferecer. Se, algum dia, tivermos a
desventura de manchar nossa inocência, procuremos logo readquirir um coração
puro e um espírito firme (cf. Sl 50, 12), lavando e purificando a alma no
Sacramento da Confissão. Quem nunca sentiu a consolação pela certeza de haver
sido perdoado, ao sair de um confessionário, não conhece uma das maiores
felicidades que nesta vida se pode experimentar. O gáudio de recuperarmos a
inocência perdida vale mais do que tudo na face da Terra.
Alegria: o verdadeiro dinamismo interior
Concluindo, é
preciso compreender que, mesmo nas piores situações, jamais podemos nos deixar
abater; ao contrário, devemos estar sempre cheios de confiança. Deus, segundo o
ensinamento maravilhoso apresentado no Evangelho da Liturgia de hoje, está
continuamente à nossa disposição e ainda quis nos dar sua própria Mãe para nos
acompanhar e atender. Sigamos, portanto, o conselho de Santo Agostinho:
“‘alegrai-vos sempre no Senhor’, isto é, alegrai-vos na verdade, não na
iniquidade; alegrai-vos na esperança da eternidade, não com as flores da
vaidade. Alegrai-vos desse modo e em qualquer lugar, e em todo tempo
lembrai-vos de que ‘o Senhor está próximo! Não vos inquieteis com coisa alguma”.’
Sejamos alegres até
em meio às piores tragédias, pois a alegria manterá em nós o dinamismo e a
força necessária para praticar a virtude. Dessa forma, o Menino Jesus
encontrará nossas almas prontas para recebê-Lo no supremo momento em que
nascerá misticamente na Sagrada Liturgia e em nosso coração.
1) HOLZNER, Josef. Paulo de Tarso. São
Paulo: Quadrante, 1994, p.558.
2)MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios.
Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.11, p.451.
3) Idem, p.452.
4) Cf. TUYA, OF, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V,
p.786
5) GOMA Y TOMAS, Isidro. El Evangelio explicado. Introducción,
infancia y vida oculta de Jesús. Preparación de su ministerio público.
Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.1, p.409.
6) Idem, ibidem.
7) SANTO AGOSTINHO. Sermo CCCII, n.15. In: Obras. Madrid: BAC,
1984, v.XXV, p.413.
9) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO Homilía XI, n.4. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio
de San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, vI, p.207.
10) FILLION, Louis-Claude. Nuestro Señor Jesucristo según los
Evangelios. Madrid: Edibesa, 2000, p.100.
11) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, op. cit., n.5, p.212.
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