Comentários ao Evangelho V Domingo da Páscoa – Ano C - Jo 13, 31-33a 34-35
Embora
constatemos a instintiva repugnância de nossa natureza em relação a todo
sofrimento, é nele que se encontra a porta da autêntica felicidade. E no amor
ao próximo o sinal característico do cristão.
31 Depois que Judas saiu do cenáculo, disse Jesus: "Agora foi
glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele. 32 Se Deus foi
glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo, e o glorificará logo.
33a Filhinhos, por pouco tempo estou ainda convosco. 34 Eu vos dou um
novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós
deveis amar-vos uns aos outros. 35 Nisto todos conhecerão que sois meus
discípulos, se tiverdes amor uns aos outros" (Jo 13, 31-33a.34-35).
No sofrimento, a raiz da glória
I - A harmonia da natureza humana no Paraíso
Nossa vida na face da
Terra pode ser definida como uma grande prova, pois viemos a este mundo para
enfrentar uma existência tisnada pelo pecado, repleta de dificuldades, e só se
formos fiéis às graças recebidas obteremos o prêmio da eterna bem-aventurança.
A prova é posta pelo Criador no caminho de todos os seres inteligentes, e nem
sequer os Anjos foram chamados à visão beatífica sem passar por ela.1 Adão e
Eva, nossos primeiros pais, tinham sido introduzidos no Paraíso, em graça,
também para serem experimentados e não foram fiéis. Ao romper a obediência e
comer o fruto proibido, foram expulsos do Éden e privados de muitos dos
privilégios concedidos por Deus quando viviam em estado de justiça, dentre os
quais a ciência infusa, que dava o conhecimento dos segredos da natureza, a
impassibilidade, pela qual não adoeciam, e o magnífico dom de integridade.
O dom de integridade
Esse dom especialíssimo
fazia com que todas as inclinações das paixões e os impulsos da natureza
estivessem em harmonia com a lei divina. 2 A sensibilidade e a vontade eram
governadas pela razão perfeitamente equilibrada, e esta se submetia com
docilidade às determinações de Deus. A ordenação do homem antes do pecado
poderia ser comparada a um motor afinado, sem nenhum parafuso frouxo, ou a um
crochê muito bem feito, sem nenhum ponto solto; em todos os movimentos de alma
e de corpo reinava o mais completo equilíbrio, sem nenhum esforço. Com o dom de
integridade jamais derramaríamos uma lágrima, não teríamos dores ou sofrimentos
de qualquer tipo, e o drama não se apresentaria em nossas vidas, pois tudo
seria conforme a ordem estabelecida pelo Criador.
Só conhecendo de perto
Nosso Senhor e Nossa Senhora poderíamos ter uma ideia exata de tal privilégio,
já que ambos o possuíram desde o primeiro instante da concepção, por não haver
passado por Eles nem sequer a sombra da mancha do pecado. Em Jesus encontramos
esse dom em grau infinito, pois n'Ele todas as ações humanas são reflexo das
divinas, em consequência da união indestrutível entre ambas as naturezas. Esta
graça de união faz com que Ele, mesmo enquanto Homem, seja intrínseca e
absolutamente impecável, e que todo o seu Corpo e até o menor de seus movimentos
sejam santos de maneira infinita.3 No caso de Nossa Senhora, pura criatura
humana divinizada pela graça, reconhecemos esse dom por não haver n'Ela nenhum
movimento desordenado.
Onde está a origem da
necessidade do dom de integridade para o homem? No fato de ser ele um
microcosmo, contando em sua natureza com elementos do reino mineral, vegetal,
animal e espiritual, aos quais se acrescenta uma participação na vida divina,
pela graça. Estes elementos trazem leis contraditórias que, devido ao pecado,
se entrechocam em nosso interior. Por exemplo, se por um lado o elemento
espiritual pede uma dedicação cada vez maior aos impalpáveis e ao sobrenatural,
a lei animal se esquiva dessa tendência, chamando nossa atenção para o que é
concreto e material. Enquanto o Mandamento de Deus ordena não cobiçar as coisas
alheias, nossos instintos nos induzem à apropriação daquilo que nos agrada,
embora não nos pertença. Os exemplos poderiam ser indefinidamente
multiplicados, pois há uma luta constante entre as várias leis que originam as
dificuldades desta vida e causam tormento, perplexidade e dor. Eis a razão de
São Paulo afirmar: "No meu íntimo, eu amo a Lei de Deus; mas percebo em
meus membros outra lei que luta contra a lei da minha razão e que me torna
escravo da lei do pecado que está nos meus membros" (Rm 7, 22-23). É o
preceito de Deus a exigir do Apóstolo um determinado comportamento, enquanto o
instinto o leva a tomar atitudes em sentido oposto. Esse é o drama do ser
humano na face da Terra.
Por isso, querer
programar uma vida sem sofrimento é algo impossível, pois não há ninguém livre
de contrariedades. Não obstante, é factível compensar a ausência desse dom,
fazendo com que, de alguma maneira, seus efeitos se operem em nossas almas?
Regressar às vias do dom de integridade
A solução se encontra em
um fator a respeito do qual houve quem ousasse aproximá-lo ao gênero dos
sacramentos,4 quiçá um "oitavo sacramento" - acrescentando de forma
analógica um novo componente ao definitivo septenário que a doutrina católica nos
ensina -, e este é o sofrimento. Há na alma humana, de fato, uma aptidão que o
Prof. Plinio Corrêa de Oliveira designava como "sofritiva", que
consiste em "uma como que capacidade e necessidade de sofrer".5 Da
mesma forma que os nossos músculos precisam ser exercitados para não definhar,
assim também nós - uma vez expulsos do Paraíso e perdido o dom de integridade -
precisamos passar pelo exercício do sofrimento para que este equilibre nossa
natureza desordenada. E quando nossa faculdade de sofrer "não se esgota
pelo sofrimento efetivo, acaba determinando uma frustração maior que faz sofrer
mais do que o sofrimento. O modo menos sofrível de levar a vida consiste em
sofrer. Uma das razões profundas dos desequilíbrios modernos é que as pessoas
não sofrem, porque acabam estabelecendo a ideia de que é possível levar uma
vida sem sofrimento".6 Numa palavra, é a dor que faz do homem uma criatura
ditosa nesta vida de estado de prova. Tal doutrina parece muito difícil de ser
admitida, pois nossa natureza não pode rejeitar a felicidade e está a cada
instante à sua procura. No entanto, já os filósofos pagãos intuíram, pelo
simples recurso à razão e à lógica, o papel da dor na vida humana.
"Julgo-te um desgraçado se nunca o foste: passaste a vida sem ter
contrariedade; ninguém (nem mesmo tu) conhecerá até onde alcançam tuas
forças",7 chegou a afirmar Sêneca.
Deus, que nos criou ávidos de encontrar a
felicidade, também colocou em nossa alma a capacidade de sofrer. Qual a razão
para este divino modo de agir? É o que nos ensina com grande profundidade a
Liturgia do 5º Domingo da Páscoa.
II - A verdadeira glória só nasce da dor
O Evangelho apresenta um
trecho do discurso de despedida de Nosso Senhor na Santa Ceia. Nesse momento
auge, em que Ele instituía para os séculos futuros o Sacramento da Eucaristia -
o mais precioso de todos os Sacramentos, no que diz respeito à substância -,
tinha diante de Si um assistente de péssimas intenções. Depois de Judas receber
o pedaço de pão molhado, a morte entrou nele, pois, embora já estivesse em
pecado mortal por ter tramado a entrega do Divino Mestre, tornou-se presa de um
demônio animado de grande fúria, o qual não suportava mais a humilhação
infligida aos infernos por um Homem que operava tão grandes milagres e tinha
tanto poder. O espírito das trevas, desde muito antes, constatara quanto seu
império periclitava, já fora de controle.8
31 Depois que Judas saiu do cenáculo, disse Jesus: "Agora foi
glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele. 32 Se Deus foi
glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo, e o glorificará
logo".
À primeira vista, o
versículo parece incompreensível. Qual é o momento, o agora, em que Nosso
Senhor diz que é glorificado? É quando Judas abandona de forma definitiva o
convívio do Colégio Apostólico, a fim de entregar o Salvador aos poderes deste
mundo, para ser julgado e morto. Jesus, em sua natureza divina, tinha pleno
conhecimento de todas as dores pelas quais iria passar, a ponto de transpirar
Sangue no Horto das Oliveiras. Perante a perspectiva da traição, porém, ficou
"perturbado em seu espírito" (Jo 13, 21), pois, mesmo tendo em sua
personalidade divina a ciência daquele instante, desde toda a eternidade, no
que dizia respeito aos meros sentimentos humanos ainda não sofrera a
experiência da deslealdade, o que dilacerou seu instinto de sociabilidade.
Ademais, outro Apóstolo haveria de negá-Lo e os demais fugiriam; por isso Ele
diz: "Para onde eu vou, não podeis ir" (Jo 13, 33). A cena é
pungente, pois, sendo sua natureza humana perfeita, essa infidelidade Lhe
custou muito mais do que custaria a qualquer um de nós.
"A alma tão delicada
e ponderada de Jesus teve de sofrer múltiplas incompreensões, preconceitos e
ideias ambiciosas de seus Apóstolos. [...] Uma dor mais lancinante estava
reservada ao Coração de Jesus: um dos Doze, que Ele havia escolhido com tanto
zelo, acompanhado com tanto devotamento, a quem dera inclusive uma missão de
confiança, deveria traí-Lo".9 Cristo recebeu aquela ingratidão com
equilíbrio perfeito, num estado de espírito plenamente resignado. Contudo,
enquanto sofria, veio-Lhe também o consolo, porque sabia ser através dessa
aceitação que iniciaria sua glória.
O Pai queria a maior glória para o Filho
A partir do momento em
que Nosso Senhor - Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e, ao mesmo tempo,
Homem perfeitíssimo com a alma na visão beatífica, dotado de ciência infusa e
de conhecimento experimental - deu seu pleno consentimento à Paixão, essa
glória se realizou. Sua exaltação consistiu em ser preso, passar por todos os
tormentos da condenação, subir ao Calvário, ser levantado na Cruz e ali
derramar todo o Sangue, até o traspassamento do seu Coração. Quando o Verbo
eterno Se encarnou, fê-lo invertendo uma lei por Ele instituída, pois sua alma
fora criada na visão beatífica e, apesar disso, assumiu um corpo padecente,
quando deveria ser glorioso.10 Ele rejeitou tais prerrogativas por desejar um
corpo semelhante ao nosso, apenas não manchado pelo pecado, para poder padecer,
dar-nos exemplo e, sobretudo, porque o queria o Pai, com vistas a que a glória
eterna d'Ele enquanto homem fosse a maior possível. O sofrimento bem aceito,
amado e assumido Lhe obteve o triunfo, o que significa que o cumprimento dos
desígnios do Pai não exigia a magnificência do corpo glorioso, os esplendores
de um poder terreno ou uma exaltação da parte dos homens, mas apenas a
conformidade com a dor.
Ademais, estava Nosso
Senhor ciente de que o fim não era a morte, e sim a Ressurreição e a Ascensão
aos Céus, onde receberia a definitiva glorificação e o reconhecimento eterno do
Pai, dos Bem-aventurados e dos Anjos, por haver cumprido sua missão redentora.
Reciprocamente, o Pai também seria glorificado, porque Ele e o Filho são um.
Era essa união substancial que permitiria, pela aceitação do sofrimento tal
como este se apresentava, que Jesus enaltecesse Aquele que O enviara.
Nossa glória também deve estar no sofrimento
Uma análise mais
profunda dos padecimentos de Cristo indica que nossa glória também é obtida
pelo sofrimento. Quantas vezes a graça nos inspira a trilharmos uma determinada
via, que passamos a percorrer com entusiasmo, na qual, entretanto, surgem
dificuldades. Diante do sofrimento nunca devemos desanimar. Pelo contrário,
quando a cruz se apresentar, cabe-nos imitar Nosso Senhor Jesus Cristo:
ajoelharmo-nos, oscular o instrumento de nossa amargura e pô-lo aos ombros com
determinação, certos de que assim se inicia o caminho da nossa glória. Nesse
sentido ensina com sabedoria São Francisco de Sales: "Quão felizes são as
almas que [...] bebem corajosamente o cálice dos sofrimentos com Nosso Senhor,
que se mortificam carregando sua cruz, e que sofrem e recebem de sua divina mão
toda sorte de acontecimentos, com submissão e amor, conforme o seu
beneplácito".11 O mesmo Doutor da Igreja ainda comenta: "O sofrimento
dos males é a mais digna oferta que podemos fazer Àquele que nos salvou sofrendo".12
Os dramas que temos de
enfrentar são indispensáveis para a conquista da eternidade feliz. Ao
aceitarmos um sofrimento com toda resignação, amor e piedade, introduzimos na
alma a paz, pois fazemos calar o egoísmo e manifestamos, não só por palavras, mas
também por atos, o desejo de ir para o Céu, uma vez que "a felicidade
consiste em sofrer com peso e medida, tendo em vista um determinado
fim".13 Desta forma, quando a tribulação se abater sobre nós nunca devemos
murmurar contra Deus pelo fato de tê-la permitido; devemos seguir o exemplo de
Jesus, que exclamou: "Se for possível afasta de mim esse cálice, mas
faça-se antes a tua vontade do que a minha" (Lc 22, 42). Cheios de
contentamento, conformemo-nos com a vontade de Deus, certos de que tudo o que
nos acontece visa ao bem de nossas almas, pois Ele não pode querer para nós o
mal.
Consideremos com alegria
que estamos nesta Terra apenas de passagem, pois, se nela permanecêssemos para
sempre, os tormentos iriam variando e se sucedendo indefinidamente. Portanto,
para aqueles que enfrentam bem a prova à imitação de Nosso Senhor, a morte
significa ter chegado o momento de descansar. Por isso canta a Igreja na
Liturgia dos defuntos: "requiescant in pace - descansem em paz".
Não foi outro o
ensinamento de São Barnabé e São Paulo aos fiéis de Antioquia, contemplado na
primeira leitura desta Liturgia: "É preciso que passemos por muitos
sofrimentos para entrar no Reino de Deus" (At 14, 22). Por outro lado, a
ausência do sofrimento significa a perda de uma valiosa oportunidade para
comprovarmos o quanto somos contingentes e dependemos de Deus, já que existimos
apenas porque Ele nos sustenta no ser, a cada instante. Dessa dependência só
nos compenetramos pela dor, pois ela mostra a nossa pequenez e nos leva ao
reconhecimento de que necessitamos de um Bem infinito, não existente em nós.
III - Uma prática antiga sob uma nova forma
Sem embargo, para que a
dor bem aceita dê seus frutos, Jesus nos oferece um meio seguro: um novo
mandamento para guiar a conduta de todos os que se consideram seus discípulos.
33a "Filhinhos, por pouco tempo estou ainda convosco".
O Mestre estava ciente,
como foi recordado, de que a hora da partida já se aproximava e, embora fosse
ressuscitar, iria deixá-los após a Ascensão aos Céus. Assim, antes do início de
seus suplícios, desejava transmitir as recomendações mais importantes, criando
condições para que os Apóstolos se dessem conta da iminência da Paixão e
fixassem a essência de sua divina doutrina.
34 "Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu
vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros".
Surpreende que na
primeira frase deste versículo Nosso Senhor Se refira ao amor de uns pelos
outros como um mandamento novo. Sabemos que desde o início da humanidade o amor
já era praticado e todos se queriam de alguma maneira. Onde está a novidade?
Precisamente na forma que nos é indicada, pois esse amor não é como antes. Esta
novidade é o exemplo dado por Ele, conforme ensina São João Crisóstomo:
"Como é que chamou ‘novo' a este mandamento, se já é encontrado no Antigo
Testamento? Ele o tornou novo pelo modo com que se amariam. Para este fim,
acrescentou: ‘como eu vos tenho amado'. [...] Não mencionou os milagres que iam
realizar e os identificou [os discípulos] por sua caridade. Por que fez isso?
Porque esta virtude é o sinal distintivo dos homens santos e a base de toda
virtude. Por meio dela todos somos salvos".14 De fato, até então o amor se
moldava por padrões humanos, correspondendo à retribuição de algum benefício
recebido ou a uma iniciativa que traria como consequência o auxílio desejado.
Sempre havia um fundo de interesse - ou de vantagem, pelo menos - no amor ao
próximo como era concebido nas sociedades do Antigo Testamento. Pois bem, Jesus
nos ensina não ser esse o amor que Ele tem por nós.
Enquanto Deus, Ele quer
bem a cada um com amor perfeito, eterno e absoluto; bem como a partir de sua
humanidade nos estima como irmãos, sendo que a origem dessa afeição é a sua
divindade. Esse amor de Deus por suas criaturas é misterioso e tem suas
peculiaridades, pois, como Criador, Ele é o único que não pode amar o que fez
senão por amor a Si mesmo, já que, ao criar, deixou seu vestígio em todos os
seres,15 conforme lemos no Livro da Sabedoria: "Porque amais tudo que existe,
e não odiais nada do que fizestes, porquanto, se o odiásseis, não o teríeis
feito de modo algum. Como poderia subsistir qualquer coisa, se não o tivésseis
querido, e conservar a existência, se por vós não tivesse sido chamada? Mas
poupais todos os seres, porque todos são vossos, ó Senhor, que amais a
vida" (Sb 11, 24-26). Entretanto, em se tratando dos seres racionais, Deus
não pôs neles apenas um rastro, mas fê-los à sua imagem.16 Podemos compreender
isso melhor, em alguma medida, através de um exemplo. A máquina fotográfica
goza de imensa aceitação em nossa sociedade, porque com ela se pode guardar a
lembrança de algum momento da vida que gostaríamos de reviver. Ora, a
fotografia é apenas uma reprodução inanimada dos acontecimentos, e não deixa de
ser verdadeiro que ela retém algo do que se passa. Nós somos
"fotografias", nas quais as Três Pessoas da Santíssima Trindade Se
comprazem em reconhecer sua imagem e em amar-Se a Si mesmas refletidas,
contemplando em ato o plano idealizado desde toda a eternidade para cada um de
nós.
Esse ponto de partida,
verdadeiramente sublime, abre novas perspectivas para o convívio humano, que
passa a ser pautado pela procura mútua, nos outros, dos reflexos da bondade que
existe em Deus num grau infinito. Nosso próximo deve ser visto por nós como um
espelho da Santíssima Trindade, uma obra-prima ou uma pedra preciosa
fulgurante, de incalculável valor, lavrada pelo poder divino. Daí nasce a
autêntica consonância, que é a faísca primeira do amor entre as almas chamadas
a se unir face a um ideal, para o qual olham em harmonia, como notou com
sutileza Saint-Exupéry ao definir a superior forma de união surgida quando
"homens do mesmo grupo experimentam o mesmo desejo de vencer".17 Se
entre pessoas que amam a Deus se verifica um imbricamento que tem sua origem
neste santo idealismo, fica comprovada a prática do novo mandamento.
Não nos esqueçamos,
porém, de que o verdadeiro amor de uns para com os outros deve ser
hierarquizado, uma vez que Deus colocou seus reflexos nas almas de forma desigual,
dando a cada qual um aspecto único, em uma variedade que manifesta a
incomparável riqueza do Criador.
Amor manifestado no empenho de santificar os outros
A extensão do amor
divino é incomensurável, pois Deus está disposto a fazer por nós tudo quanto seja
necessário, a ponto de ter oferecido a própria vida passando pela crucifixão, o
pior suplício de seu tempo. Ele Se imolou por todos e o faria se fosse por um
só homem. Por essa razão nosso amor para com os outros também deve ser levado
até as últimas consequências, ambicionando para eles o que Deus quer para cada
um: a santidade. Desejar que o próximo saia da consideração egoísta, pragmática
e interesseira do mundo e rume para a Jerusalém Celeste é a mais perfeita
manifestação de amor que podemos lhe dar. Devemos empreender, para isso, todos
os meios ao nosso alcance, suportando suas debilidades, corrigindo-o com
compaixão, dando bons exemplos e sacrificando nossos gostos e preferências
pessoais, se com isso o ajudamos na prática da virtude, ainda sabendo que esses
pequenos atos representam muito pouco perto do que nos está reservado ao cruzar
os umbrais da eternidade, pelos méritos infinitos do Divino Modelo. Maravilhoso
mandamento que, ao ser praticado, ordena a alma e elimina apegos, caprichos e
dificuldades do relacionamento humano. Desta maneira, todas as misérias se
desvanecem, permanecendo apenas um amor sobrenatural, que é a ternura de Deus
pelas criaturas e das criaturas entre si.
É oportuno também
aplicarmos esse ensinamento a um plano individual, a cada um de nós. Se esse
deve ser nosso amor para com os outros, recordemos que quando a prática da
virtude da humildade é mal concebida, temos a tendência de considerar nossas
próprias insuficiências para nos autodestruir, indo contra o amor de Deus. Uma
vez que fomos criados, podemos afirmar com plena certeza que há em nós algum
reflexo divino que deve ser objeto do nosso amor para conosco, paralelo ao amor
que Ele nos tem.
Quando fazemos algo de bom e Ele nos premeia,
não está exaltando o nosso esforço, mas seus próprios dons,18 e, portanto, Se
glorifica a Si próprio. E se são os dons d'Ele que reconhecemos em nós,
cabe-nos amá-los para praticar o novo mandamento com toda integridade.
O sinal distintivo dos verdadeiros cristãos
35 "Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes
amor uns aos outros".
Neste último versículo
Nosso Senhor dá um passo a mais e declara ser a forma de amor ensinada por Ele
o fator distintivo dos que realmente O seguem. As pessoas alheias ao convívio
dos cristãos, ao verem um amor tão autêntico, dão-se conta de que ali está
presente o próprio Deus. E apesar de ter Ele ido para o Céu, não abandonou sua
Igreja, pois prometeu: "Sempre que dois ou mais estiverem reunidos em meu
nome, eu estarei entre eles" (Mt 18, 20). O fato de vivermos sob o influxo
do amor sobrenatural de que Ele nos deu exemplo é um modo de prolongar nesta
Terra sua presença, orientando, amparando e instruindo com desinteresse os que
também O amam, sem nenhum sentimentalismo, romantismo ou egoísmo, senão com um
amor tão puro que cause admiração aos homens e até aos próprios Anjos, a ponto
de estes últimos poderem encontrar na face da Terra um límpido espelho do
convívio entre os eleitos na visão beatífica.
IV - Sofrimento e amor: causas do prêmio final
Face ao panorama
descortinado pelo Evangelho deste 5º Domingo da Páscoa, não podemos deixar de
ter presente o fim a que nos conduz a noção sobrenatural do sofrimento e do
amor ao próximo levado até à imitação daquele que Nosso Senhor manifestou por
nós. Tal fim é apontado com muita clareza na segunda leitura, extraída do
Apocalipse: "Esta é a morada de Deus entre os homens, Deus vai morar no
meio deles. E eles serão o seu povo, e o próprio Deus estará com eles. Deus
enxugará todas as lágrimas dos seus olhos. A morte não existirá mais, e não
haverá mais luto, nem choro, nem dor, porque passou o que havia antes"
(21, 3-4).
São João indica,
profeticamente, o local destinado a todos os que seguirem as recomendações
dadas pelo Redentor, onde não existe mais a dor e a alegria é plena na visão de
Deus face a face. Diante da eternidade feliz todo sofrimento desta Terra será
nada, como escreveu Santa Teresinha: "quando penso que por um sofrimento
suportado com alegria amaremos melhor a Deus durante toda a
eternidade!".19 Sim, nem sequer vamos nos lembrar das dificuldades que
tivemos neste mundo, pois o estado de prova terá passado como num piscar de
olhos. Restará apenas a bem-aventurança.
Não somos capazes de
conceber como será a vida na eternidade: tão cheia de gozo que São Paulo, após
subir ao terceiro céu, voltou sem conseguir exprimir em termos humanos o que
Deus tem preparado para os que O amam (cf. I Cor 2, 9), e da qual São João
Bosco, tendo visitado em sonho a antecâmara do Paraíso, regressou descrevendo
maravilhas.20 O convívio com os Anjos, com os Santos, com Nossa Senhora e com
Deus é o que nos aguarda; mas, para chegarmos a esse Reino, aceitemos com
resignação todos os sofrimentos permitidos pela Providência Divina para o nosso
bem e amemos nossos irmãos com sincera afeição. Não nos esqueçamos de que as
dores terminam na hora da nossa morte, enquanto no Céu "a caridade jamais
acabará" (I Cor 13, 8).
1Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.64, a.2.
2Cf. Idem,
q.95, a.1.
3Cf. ROYO
MARÍN, OP, Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid:
BAC, 1961, p.72-73.
4Cf. BEAUDENOM, Léopold. Méditations affectives et
pratiques sur l’Évangile. Paris: Lethielleux, 1912, t.I, p.227-228; FABER, apud
CHAUTARD, OSCO, Jean-Baptiste. A alma de todo apostolado. São Paulo: FTD, 1962,
p.112.
5CORRÊA DE
OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 23 maio 1964.
6Idem,
ibidem.
7SÊNECA.
Tratados filosóficos. Cartas. México: Porrúa, 1979, p.75.
8Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.81, a.2.
9TANQUEREY,
Adolphe. La divinisation de la souffrance. Tournai: Desclée, 1931, p.26.
10Cf. SÃO
TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.14, a.1, ad 2.
11SÃO
FRANCISCO DE SALES. Sermon pour la feste de Saint Jean Porte-Latine. In: Œuvres
Complètes. Sermons. 2.ed. Paris: Louis Vivès, 1862, t.IV, p.540.
12SÃO FRANCISCO
DE SALES. Lettre CXII, à une dame. In: Œuvres Complètes. Lettres
Spirituelles, op. cit., t.X, p.333.
13CORRÊA DE
OLIVEIRA, op. cit.
14SÃO JOÃO
CRISÓSTOMO. Homilía LXXII, n.3. In: Homilías sobre el Evangelio de San Juan
(61-88). Madrid: Ciudad Nueva, 2001, v.III, p.130.
15Cf. ROYO
MARÍN, OP, Antonio. Dios y su obra. Madrid: BAC, 1963, p.451.
16 Idem,
ibidem.
17SAINT-EXUPÉRY,
Antoine de. Vol de nuit. Paris: Gallimard, 1931, p.104.
18 Cf.
SANTO AGOSTINHO. Epistola CXCIV, c.V, n.19. In:
Obras. 2.ed. Madrid: BAC, 1972, v.XIb, p.71.
19 SANTA
TERESA DE LISIEUX. Carta 43b, à Irmã Inês de Jesus. In: Obras Completas. Paço
de Arcos: Carmelo, 1996, p.345.
20 Cf. SÃO
JOÃO BOSCO. Vestíbulo del Cielo. In: Biografía y escritos. Madrid: BAC, 1955,
p.654-663.
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