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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Evangelho Solenidade de Todos os Santos Mt 5, 1-12a

Final dos comentários ao Evangelho Mt 5, 1-12a Bem aventuranças

O privilégio de ver a Deus nesta vida
8 “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”.
Ao ouvir falar em “puros de coração”, pensa-se logo na virtude angélica. Porém, como explica Fillion, essas palavras “não designam exclusivamente a castidade, mas o afastamento do pecado, a isenção de toda mácula moral. O coração é aqui considerado, à maneira hebraica, como o centro da vida moral”.11
O alcance desta expressão é, portanto, bem mais amplo e profundo. O puro de coração tem todas as intenções e aspirações voltadas para o Altíssimo e para o benefício do próximo. Admirando tudo quanto é santo, nobre e elevado, transborda do desejo de fazer bem aos demais, por amor a Deus.
No esforço de descrever a íntima união dessas almas com seu Criador, recorre Bossuet a sugestivas comparações: “Um cristal perfeitamente límpido, um ouro perfeitamente refinado, uma fonte perfeitamente clara não igualam a beleza e a limpidez de um coração puro. [...] Deus Se compraz em mirar-Se nele como num belo espelho: imprime-Se nele em toda a sua beleza”.12
Seria, entretanto, um equívoco julgar que o prêmio prometido nesta bem-aventurança refere-se exclusivamente à eternidade, exigindo toda uma vida de abnegação e aridez a fim de alcançar a Visão Beatífica. Pelo contrário, como ensina São Tomás, nas bem-aventuranças Nosso Senhor promete também para este mundo a recompensa.13 E Fillion afirma que a pureza de coração confere “já nesta Terra, um começo de visão, um conhecimento mais perfeito do Deus que Se revela às almas puras”.14
Como se dará isto? Sem dúvida, por meio da graça. Pois, enquanto a impureza cega as almas para tudo quanto é elevado, quem tem um coração limpo vê Deus nesta vida através da fé, admirando os reflexos divinos nas criaturas; sobretudo, contemplando a ação da graça nas almas. É esta, aliás, uma das mais belas e altas manifestações de Deus nesta Terra.
Como se tornar um verdadeiro filho de Deus
9“Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”.
Todos os promotores da verdadeira paz –– que é a tranquilidade da ordem, segundo a célebre definição de Santo Agostinho15 –– serão chamados filhos de Deus.
Ora, para irradiar a paz é preciso começar por desfrutar dela no próprio interior. Isso significa não ter suscetibilidades nem ressentimentos, sabendo ceder oportunamente às exigências do próximo, ainda quando forem ou parecerem injustas, desde que não nos façam incorrer em pecado. À pratica desse princípio do modo mais radical possível nos convidam as palavras pronunciadas mais adiante pelo Senhor, no mesmo Sermão da Montanha: “Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra. E ao que te tirar a capa, não impeças de levar também a túnica” (Lc 6, 29).
Agir assim exige verdadeiro heroísmo. Mas Cristo nos ensina que não devemos poupar meios — mesmo dolorosos — quando se trata de alcançar a harmonia entre os corações e elevá-los até o Criador.
Se quisermos, portanto, ser “filhos de Deus”, aprendamos a ser pacíficos, atendendo à bela exortação de Bossuet: “Tenhamos sempre palavras de reconciliação e de paz, para dulcificar a amargura de nossos irmãos contra nós ou contra os outros; procuremos sempre amenizar as más referências, evitar as inimizades, as friezas, as indiferenças, enfim, reconciliar os que estão em desacordo. Isso é fazer a obra de Deus e mostrar-se filhos seus, imitando sua bondade”.16
A alegria na perseguição
10 “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. 11 Bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de Mim. 12a Alegrai-vos e exultai porque será grande a vossa recompensa nos Céus”.
Por amor à justiça, isto é, à santidade, passaremos sem dúvida nesta vida por momentos em que seremos incompreendidos e mesmo perseguidos.
Nessas circunstâncias, não devemos nos deixar abater. Lembremos, pelo contrário, que Deus é o Senhor da História e nada acontece sem sua permissão, por mínimo que seja: “Não se vendem dois pardais por uma moedinha? No entanto, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do vosso Pai” (Mt 10, 29). O Criador tem tudo contado, pesado e medido. E age sobre os acontecimentos visando sempre, junto com sua própria glória, a salvação dos que são seus. Por isso, afirma São Paulo: “Tudo quanto acontece, concorre para benefício dos justos” (Rm 8, 28).
Em quantas ocasiões não foram os santos objeto das mais injustas perseguições, por amor à verdade? Porém, não perderam a confiança na Providência Divina, nem externaram ressentimento contra os seus perseguidores, aos quais tratavam com caridade e sem ódio pessoal, mas também com a inegável superioridade do homem que pratica a virtude, em relação a quem se deixa arrastar pelo vício.
Por isso, o próprio Deus Se encarregará de recompensá-los muito além do merecido: possuirão o Reino dos Céus, um prêmio eterno, infinitamente superior a todo sofrimento padecido nesta vida.
Convite à radicalidade do bem
A doutrina das bem-aventuranças revelou para todo sempre, como vimos, o vácuo da felicidade fundada na satisfação das paixões desregradas e na posse dos bens materiais. Pois, como ensina magistralmente o Santo Padre, “os critérios mundanos são subvertidos quando a realidade é examinada na perspectiva correta, isto é, sob o ponto de vista da escala de valores de Deus, a qual difere da escala de valores do mundo”.17
Com essas oito sentenças, porém, Cristo indicou a via para alcançar o Céu, onde veremos a Deus face a face e participaremos da própria vida divina, possuindo a mesma felicidade da qual Ele goza. E quem rege sua conduta de acordo com elas começa por antegozar espiritualmente, já nesta Terra, a felicidade eterna.
As bem-aventuranças não são, portanto, frases para serem estudadas apenas com a inteligência, de modo frio, mas sim princípios de vida a serem lidos e meditados com o coração, com o calor de alma de quem quer se pôr a caminho, seguindo os passos de Nosso Senhor.
Com uma suavidade toda divina, elas nos convidam à radicalidade na prática do bem, pois o padrão de virtude que nelas Cristo nos propõe não é outro senão Ele mesmo, o próprio Deus!
1 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.94.
2Idem, ibidem.
3GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio Explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.II, p.158.
4Idem, ibidem.
5BOSSUET. Meditations sur l’Évangile. Versailles: Lebel, 1821, p.4.
6Alguns autores opinam que a Montanha das bem-aventuranças é o monte hoje conhecido também pelo nome de Cornos de Hattin, situado a meio caminho entre Caná e Cafarnaum (cf. GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.155-156).
7FILLION, op. cit., p.92.
8 BENEDETTO XVI. Gesù di Nazaret. Milano: Rizzoli, 2007, p.100-101.
9 SAN JUAN CRISÓSTOMO. Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 2007, p.275.
10 SAN AGUSTÍN. Obras ­ Homilías. Madrid: BAC, 1955, v.X, p.53.
11 FILLION, Louis-Claude. La Sainte Bible commentée. Paris: Letouzey et Ané, 1912, v.VII, p.43.
12 BOSSUET, op. cit., p.16. “Assim, pois, tudo o que nas bem-aventuranças se [...] afirma como prêmio pode ser ou a própria bem-aventurança perfeita, e nesse sentido pertence à vida futura, ou algum início da bem-aventurança, como ocorre entre os santos, e nesse sentido os prêmios pertencem à vida presente. Com efeito, quando alguém começa a progredir no exercício das virtudes e dos dons, pode-se esperar dele que chegará à perfeição de sua caminhada aqui e na pátria” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.69, a.2, resp.).
14 FILLION, La Sainte Bible commentée, op. cit., p.43.
15 “A paz da Cidade Celestial é a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. A paz de todas as coisas, a tranquilidade da ordem” (De civitate Dei, lib. XIX, c.XIII).
16 BOSSUET, op. cit., p.18-19.
17 BENEDETTO XVI, op. cit., p.95.

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