Continuação dos comentários ao Evangelho I Domingo da Quaresma Lc 4, 1-13 Ano C - 2013
Ensinamentos a
tirar das tentações de Jesus Cristo Lc 4, 1-13
1
Jesus, cheio do Espírito Santo, partiu do Jordão e foi levado pelo Espírito ao
deserto, 2 onde esteve quarenta dias, e foi tentado pelo demônio. Não comeu
nada nestes dias; passados eles, teve fome.
Este início do capítulo 4
vem envolto num insondável mistério: “Cheio do Espírito Santo...” Ademais, “foi
levado pelo Espírito...”. Por que “levado”? Outro Evangelista dirá “conduzido”,
e um terceiro, “impelido”. São verbos categóricos que exprimem bem o poder
empregado pelo Espírito Santo para agir em nossas almas quando eleitas para uma
grande missão.
O batismo deve ter-se
realizado à altura de Jericó. Dali saindo, provavelmente subiu as encostas
agrestes do Monte Quarentena (Djebel Qarantal), composto de rochas
avermelhadas, com cinco cristas muito características, separadas por
consideráveis ravinas. Ainda hoje encontram-se por aquelas pedras escavações
feitas à mão, que o zelo fervoroso de contemplativos trabalhou para favorecer a
solidão procurada por eles. No seu ponto mais alto, um observador pode
percorrer o lindo panorama circular: ao norte, o Hermon; a oeste, a terra de
Judá; ao sul, o Mar Morto; a leste, o Monte Nebo (de onde Moisés avistou a
Terra Prometida pouco antes de morrer), e os planaltos da Perea. Naqueles
tempos, por lá deviam vagar animais selvagens, tornando o lugar muito inóspito
para qualquer homem, ainda mais na situação de solidão em que se encontrava
Jesus, conforme nos relata Marcos: “Esteve em companhia dos animais selvagens”
(Mc 1, 13). Hoje, no cimo do monte, ergue-se o convento de São João, ocupado
por monges gregos que solicitamente acompanham os peregrinos até a gruta que
teria sido freqüentada pelo Salvador e chegam a indicar, até mesmo, as marcas
de seus divinos pés sobre as pedras do caminho.
Jesus foi
tentado durante quarenta dias
São Lucas nos fala de
tentações ao longo de quarenta dias, entretanto só menciona as três últimas
delas. Como entender este fato? São Tomás assim no-lo responde: “Segundo a
explicação de Beda, o Senhor foi tentado durante quarenta dias e quarenta
noites. Mas não se trata daquelas tentações visíveis mencionadas por Mateus e
Lucas, as quais ocorreram evidentemente após o jejum, mas de outros assaltos
que Cristo pôde sofrer do diabo durante aquele tempo do jejum” (7). São Tomás de Aquino é harmônico, neste seu
parecer, com muitos outros autores como, por exemplo, São Justino, Orígenes,
Santo Agostinho, se bem que outros tantos — como Suárez, Lagrange, Plummer —
discordem deste ponto de vista.
São Mateus é ainda mais
categórico ao dizer: “Jesus foi conduzido
pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio” (Mt 4, 1).
Na história da criação,
os primeiros a padecerem a prova da tentação foram os Anjos, e nem todos
permaneceram fiéis... A seguir foram os nossos primeiros pais, e de seu pecado
sofrerão as consequências todos os homens, até o fim do mundo. Mas Jesus era
impecável e, apesar disso, pôde efetivamente ser tentado. N’Ele não existia o fomes
peccati nem sequer a mais leve inclinação ao pecado, quer fosse pela
carne ou até mesmo pelas pompas e vaidades do mundo, por possuir, ademais, um
juízo sereno e clarividente. Porém, quanto às sugestões diabólicas externas,
não havia o menor inconveniente em que viesse submeter-Se a elas
voluntariamente, pois, não sendo interiores e também por não haver a menor
imperfeição em Quem as padeceu, deixam a exclusividade de toda a malícia ao
tentador (8).
De acordo com os
desígnios de Deus, “convinha [a Jesus]
que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hb 2, 17), pois,
para levar até os extremos limites seu amor por nós, ao “compadecer-Se de nossas fraquezas”, maior perfeição manifestaria
quando passasse “pelas mesmas provações
que nós, com exceção do pecado” (Hb 4, 15).
Sobre a razão da oração e
do jejum, baste-nos lembrar que “esta espécie de demônio só se pode expulsar à
força de oração e de jejum” (Mt 17, 20).
A dúvida do
demônio
3 Então o demônio disse-Lhe: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se
converta em pão”.
Os autores se conjugam no
comentário deste versículo, e dentre eles se destaca Suárez (9), afirmando que,
ao tentar Jesus, o demônio não visou principalmente fazê-Lo pecar, mas saber ao
certo se Ele era ou não o Filho de Deus. Com uma habitual e sintética clareza,
São Tomás assim nos explica esse particular: “Como diz Santo Agostinho, ‘Cristo
Se fez conhecer dos demônios na medida que Lhe pareceu conveniente, não porque Ele
é a vida eterna, mas por certos efeitos temporais de seu poder’, de onde podiam
eles conjecturar que Jesus era o Filho de Deus. Mas como viam n’Ele sinais de
debilidade humana, não sabiam com certeza que era Filho de Deus; por isso
quiseram tentá-Lo. Esse é o sentido das palavras de Mateus (Mt 4, 2-3), quando
se diz que, depois que teve fome, o tentador se aproximou d’Ele; pois, como diz
Santo Hilário, ‘o demônio não teria ousado tentar Cristo se não tivesse
observado n’Ele, pela debilidade da fome, a natureza humana’. Isso é evidente
pelo próprio modo de tentar, quando ele fala: ‘Se és o Filho de Deus’. Santo
Ambrósio explica tais palavras, dizendo: ‘O que denota essa maneira de se
expressar, senão que ele sabia que o Filho de Deus haveria de vir, mas não
acreditava que tivesse vindo na fraqueza da carne?’” (10).
Algo devia saber Satanás
sobre aquele varão sui generis, o qual, apesar de nascido numa gruta, havia
sido louvado por anjos, pastores e reis do Oriente. Pois, se assim não fosse, teria
empregado menos sofisticação na elaboração das tentações, como adiante veremos.
O fato de o demônio
começar pela suposição “se és o Filho de Deus” demonstra sua suspeita, não
ainda inteiramente comprovada, de se tratar do Messias prometido, se bem que
humano e não divino. E por isso procura seduzi-Lo e fazê-Lo abandonar as vias
do Pai.
Como fez o
demônio para tentar Jesus
Sobre a maneira de o
demônio apresentar a Jesus suas seduções, divergem as opiniões dos autores. Uns
poucos chegam a conferir-lhes um carácter meramente simbólico, ou seja, não
passaram de invenções dos Evangelistas para ajudar os homens em suas lutas
espirituais. Outros, apesar de aceitarem sua existência real, julgam não terem
ocorrido senão por pura sugestão interna. Ambas as suposições não nos parecem
cabíveis, tanto debaixo do prisma meramente histórico, como do teológico. Entre
os que escolhem a via mais segura está Suárez, categórico em admitir a hipótese
de o demônio ter assumido forma física para poder tentar Jesus:
“Satanás deve ter
aparecido usando a figura humana, como o diálogo entre um e outro parece
exigir. Talvez com a aparência de um santo varão ou alguma outra que julgasse
mais própria para convencer. Não pôde tentar o Senhor a não ser pela palavra,
do mesmo modo como fez com Adão, pois ambos careciam de paixões insubordinadas,
e não era decoroso que o tentador pudesse atuar na imaginação ou potências internas
de Cristo” (11).
Através das
pequenas coisas, tenta o demônio as grandes vocações
Ainda dentro dos
ensinamentos de São Tomás de Aquino (12), sabemos que os homens entregues às
vias da perfeição, o demônio não procura tentá-los diretamente para os pecados
mais graves. Sua aproximação inicial é através das imperfeições e faltas leves,
até o momento de propor as graves. Essa metodologia, ele a empregou no Paraíso
terrestre ao seduzir nossos primeiros pais. Começou esforçando-se por despertar
a gula de Eva: “Por que não comeis?...” Depois sua vã curiosidade: “Vossos olhos
se abrirão…” Por fim, apresentou-lhe o último grau de orgulho: “Sereis como
deuses…”
No caso do presente
versículo, serve-se Satanás de uma situação concreta. Depois de quarenta dias
em completo jejum, fizeram-se presentes em Jesus as características de Filho do
Homem: teve necessidade de repor suas energias, sentiu o ímpeto da fome. De
todas as virtudes, uma das mais importantes é a fé. Sem uma direta revelação,
assimilada por essa virtude, nenhuma criatura, humana ou angélica, é capaz de
admitir a hipótese da união das duas naturezas em Cristo. Por isso o espírito
maligno — que não possui a fé — aproxima-se d’Ele a fim de chamar-Lhe a atenção
para as pedras do caminho que mais se assemelhavam às formas dos pães da época.
Quiçá chegasse a Lhe fazer a proposta tendo nas mãos algumas delas.
Inversão da
ordem: um ato revolucionário
Depois de insidiosamente
procurar estimular o amor-próprio de sua suposta vítima, quis o demônio fazer Jesus
utilizar-Se, com desobediência e abuso, dos poderes divinos, para satisfazer a
fome e, assim, ser levado também à gula. Ardilosa a proposta, pois a necessidade
era real; e que é o pão senão um alimento dos pobres? Conseguiria o demônio,
por essa via, não só levar aquele Homem ao uso indevido do poder de fazer
milagres, como, ademais, comprovar a messianidade d’Ele. Se Jesus tivesse caído
nessa artimanha, sua natureza divina seria, nessa ocasião, subjugada à humana.
No fundo, praticaria um ato revolucionário, ao inverter a verdadeira ordem e
grau de importância dos seres, embora, absolutamente considerado, não seja
nenhuma falta saciar a fome nem mesmo fazer um milagre.
Sobre este particular,
ensina-nos o Doutor Angélico:
“Usar do necessário para
o sustento não constitui pecado de gula; mas pode pertencer a esse vício o fato
de o homem agir de modo desordenado pelo desejo desse sustento. Ora, é
desordenado querer obter o alimento por meio de um milagre, quando se pode
recorrer a meios humanos para o sustento do corpo. Cristo podia satisfazer sua fome
de outra maneira, sem necessidade de um milagre, fazendo como São João Batista
(Mt 3, 4), ou mesmo indo a localidades vizinhas. Por isso o demônio pensava que
Cristo pecaria se, sendo um homem como os outros, tentasse fazer milagres para
aplacar a fome” (13).
Continua no próximo post.
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