CONTINUAÇÃO DOS COMENTÁRIOS AO EVANGELHO DO XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM Lc 16, 19-31
O JUÍZO
ETERNO
“No entardecer de nossa
vida, seremos julgados segundo o amor”, escreveu São João da Cruz.
A cena descrita em seguida é ainda mais dramática e passa-se
logo após a morte de ambos.
Sobre o corpo de Lázaro, nenhuma notícia ou comentário.
Certamente atirado numa vala comum, própria aos indigentes, sem qualquer
cerimônia. Entretanto, enquanto a preocupação dos responsáveis era de se verem
livres daquele desprezível cadáver, os Anjos conduziram sua alma ao Céu, pois,
de acordo com a literatura rabínica, no Paraíso não se entrava senão pelo
auxílio dos puros espíritos.
O rico também morre, pois nem o muito dinheiro nos livra
desse fim. Mas sua alma há muito já deixara a vida espiritual, pois as ações
próprias a esta, ele não as praticava. De fato, sua dureza de coração e falta
de compaixão para com o mendigo, à porta de seu palácio, somadas à suma fruição
dos bens terrenos, haviam destroçado qualquer laivo de amor a Deus. A respeito
dele, Lucas afirma ter sido sepultado, mas não diz uma palavra sobre quem acompanhou
o seu enterro e quais as pompas que o cercaram. Quantos aduladores devem ter
rodeado o rico durante a vida, interessados nos seus bens, ou até mesmo para
gozar do prestígio de sua amizade e, ao término de sua existência, nem sequer
dele se lembraram... Como foi seu juízo particular? Qual a sentença proferida
por Deus? Não se ocupa desses detalhes o Evangelho e simplesmente apresenta o
rico entre os tormentos do inferno.
Ofensa
infinita, castigo eterno
A Doutrina Católica nos ensina claramente que o pecado mortal
constitui uma ofensa a Deus, irreparável e de suma gravidade. Quem morre na
impenitência final, resistindo até o último momento, fixa-se no pecado mortal
enquanto desordem permanente, merecendo um castigo também eterno1.
A gravidade da ofensa se mede sobretudo pela dignidade da
pessoa ofendida. Uma agressiva bofetada desfechada por alguém a seu igual,
merece uma penalidade muito menor do que uma outra, da mesma intensidade,
desferida contra uma grande e representativa personalidade. O castigo sempre deverá
ser aplicado em proporção com a categoria do ofendido. Ora, se a pessoa
ultrajada é infinita, o castigo só poderá ser eterno; tanto mais que, para
reparar o pecado, quis o Verbo de Deus encarnar-se e sofrer todos os tormentos
da Paixão.
Mas, como se pode explicar que um pecado, cometido em apenas
alguns minutos, mereça uma pena eterna? Segundo nos ensina São Tomás, a
perpetuidade dos castigos infligidos por Deus aos condenados está
proporcionada, não à duração do pecado atual, mas à sua gravidade. A Justiça
humana também usa o mesmo critério, ao condenar à prisão perpétua alguns réus
cujos crimes foram praticados em poucos minutos.
Assim se compreende o porquê de ter ido para o inferno aquele
rico: morreu na impenitência final de sua grave avareza.
O inferno, consequência
do pecado
Lucas nos fala dos “tormentos do inferno”. Sabemos pela
Revelação o quanto são eles terríveis. Acima de todos os sofrimentos está a
pena de dano: o fato de ter sido criado para participar da felicidade do
próprio Deus e ver-se por Ele rejeitado, é o maior dos tormentos. Daí surgem
duas reações no condenado: a primeira consiste em querer destruir a Deus para
pôr fim às suas angústias; a segunda, em desejar sua própria aniquilação. Ora,
como ambas são irrealizáveis, a conseqüência é o desespero eterno.
A esse incomensurável sofrimento se acrescenta o dos
sentidos. A Revelação não deixa margem a dúvidas sobre a realidade do fogo do
inferno2 e de sua natureza corpórea3. Queimando os corpos sem consumilos, quem
o sustenta sempre aceso é o próprio Deus. Os cinco sentidos são atormentados de
maneira especial em relação aos pecados correspondentes.
Na sua santidade de modelo sacerdotal, São João Maria Batista
Vianney tece algumas piedosas considerações muito úteis para se compreender o
porquê foi o rico parar no inferno: “Meus
filhos, se vísseis um homem fazer uma grande fogueira, empilhar pedaços de
lenha uns sobre os outros e, perguntando-lhe o que estava fazendo, ele vos
respondesse: ‘Estou preparando o fogo que me deverá queimar’, que pensaríeis? E
se vísseis esse mesmo homem aproximar-se da fogueira já acesa e atirar-se
nela... que diríeis? Cometendo o pecado, é assim que fazemos. Não é Deus que
nos lança no inferno, somos nós que nele nos lançamos pelos nossos pecados. O
condenado dirá: ‘Perdi a Deus, minha alma e o Céu; foi por minha culpa, por
minha máxima culpa!’... Elevar-se-á do braseiro para tornar a cair nele...
Sentirá sempre a necessidade de se elevar, porque era criado para Deus, o
maior, o mais alto de todos os seres, o Altíssimo ... como uma ave num aposento
voa até o teto que detém os condenados.
“Adiamos a nossa
conversão para a hora da morte; mas quem nos assegura que teremos o tempo e a
força nesse momento terrível, receado por todos os Santos, quando o inferno se
congrega para desferir-nos o último assalto, vendo que é o instante decisivo?
“Muitos há que perdem a
fé, e só crêem no inferno, nele entrando. “Não, sem dúvida, se os pecadores
pensassem na eternidade, nesse terrível ‘sempre!’ ... haveriam de se converter
imediatamente...” 4.
Quantas e quantas vezes o rico não deve ter sentido, dentro
de si, a voz da consciência recriminando-lhe o apego desregrado pelas roupas,
pelos prazeres excessivos da mesa e, sobretudo, pelo dinheiro! Lázaro à sua
porta era um dom de Deus, estimulando-o à prática da caridade e, ao mesmo
tempo, à compreensão do vazio das criaturas. Mas ele preferiu os bens deste
mundo a ponto de dar as costas a Deus. Daí entender-se melhor os versículos 22
a 26:
Morreu também o rico, e
foi sepultado. Quando estava nos tormentos do inferno, levantando os olhos, viu
ao longe Abraão e Lázaro no seu seio. Então exclamou: “Pai Abraão, compadece-te
de mim, e manda Lázaro que molhe em água a ponta do seu dedo para refrescar a
minha língua, pois sou atormentado nestas chamas”. Abraão disse-lhe: “Filho,
lembra-te que recebeste os teus bens em vida, e Lázaro, ao contrário, recebeu
males; agora é ele aqui consolado e tu és atormentado. Além disso, há entre nós
e vós um grande abismo; de maneira que os que querem passar daqui para vós não
podem, nem os daí podem passar para nós”.
Torna-se patente o empenho do Divino Mestre, tão bem
transcrito por Lucas, em alertar os cristãos de todos os tempos para os
castigos eternos, como conseqüência de uma vida transcorrida no pecado, e, em
extremo oposto, a alegria com que será premiada a virtude após a morte.
Por isso, o Magistério da Igreja sempre fez eco à voz de
Jesus, como, por exemplo, nestas palavras de João Paulo II:
“Até mesmo no campo do
pensamento e da vida eclesial, algumas tendências favorecem inevitavelmente o
declínio do senso do pecado. Alguns, por exemplo, tendem a substituir posições
exageradas do passado, por outros exageros; assim, da atitude de ver o pecado
em toda parte, passa-se a não o vislumbrar em parte alguma; da demasiada
acentuação do temor das penas eternas, à pregação dum amor de Deus que
excluiria toda e qualquer pena merecida pelo pecado; da severidade no esforço
para corrigir as consciências errôneas, a um pretenso respeito pela
consciência, até suprimir o dever de dizer a verdade. (...)
“Diante do problema do
embate de uma vontade rebelde com Deus infinitamente justo, não se pode deixar
de nutrir sentimentos de salutar ‘temor e tremor’, como sugere São Paulo” 5.
Assim sendo, a Parábola de hoje tem grande importância para
os dias atuais e por isso vale a pena conhecê-la em toda sua substância e
profundidade.
Continua no próximo post
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