Continuação dos comentários ao Evangelho – IV domingo da Páscoa - Bom Pastor Jo, 27-30 - Ano - C 2013
O Pastor ama e conhece profundamente suas ovelhas
27 As minhas ovelhas ouvem a
minha voz, Eu as conheço, e
elas Me seguem.
Das metáforas relacionadas com
a pesca, lidas no anterior domingo, passamos agora às do pastoreio. A Sabedoria
infinita de Deus nelas pensou desde toda a eternidade, para assim melhor Se
fazer entender pelos homens no relacionamento entre Criador e criatura. A
própria natureza da Judéia facilitava as características desta simbologia usada
pelo Divino Mestre. A terra naquelas regiões não era fértil para a plantação,
devido aos seus consideráveis trechos pedregosos e um tanto áridos. O pastoreio
ali se adaptava mais comodamente do que a agricultura e, assim mesmo, exigia do
rebanho um grande número de deslocamentos. Essa situação redundava na
necessidade de vigilância e aplicação mais esmeradas do pastor. As
circunstâncias tornavam mais nítidas as diferenças entre o autêntico pastor e o
mercenário. Deus quis o nascimento da figura do pastoreio e a colocou com
destaque na pluma dos literatos. Até os poetas pouco dados a compreenderem a
excelsitude da castidade são levados a realçar a pureza virginal do zelo
caridoso dos pastores, em geral, por suas ovelhas.
A vida do pastor nos leva a
considerar seu amor casto, inocente, governando sem decretos, muito pelo
contrário, baseado num relacionamento íntimo, fortemente paternal — talvez
melhor se diria maternal — através do qual atende todas as conveniências e
necessidades de suas ovelhas. Ele sabe entretê-las, defendê-las, ampará-las,
levá-las a pastar e até mesmo agradá-las com seus cantos ou com as melodias de
sua flauta. “Ele chama as suas ovelhas uma a uma pelos seus nomes” (Jo 10, 3).
São Tomás de Aquino ressalta a grande familiaridade existente nesse
relacionamento, pois chamar pelo nome significa ter íntima amizade. Ao
revertermos os símbolos aos simbolizados, a realidade e a significação se
tornam incomparavelmente mais profundas. Cristo conhece a natureza e o ser de
cada uma de suas ovelhas, e também o objetivo imediato, tanto quanto o último,
para o qual foram criadas, assim como o que são e o que poderão vir a ser com o
auxílio de sua graça. Por isso o Doutor Angélico julga ver nesse “chamar pelo
nome” (nominatim) “a eterna predestinação, pela qual Deus conhece cada ovelha,
cada homem” (7).
O homem, o mais elevado ser
percebido por nossos sentidos, não é criado em série. Deus aplica seu poder
criador sobre cada pessoa, uma a uma, e por isso não há homens iguais, nem
moral nem fisicamente, nem sequer no referente às circunstâncias da vida
individual e menos ainda no que tange à vocação pessoal. Daí a profundidade
insondável desse conhecimento dispensado por Jesus a cada um de nós, a ponto de
compará-lo ao existente entre o Pai e o Filho (Jo 10, 15), ato eterno tão
absoluto que, através dele, uma Pessoa divina é gerada pela outra. O
conhecimento que o Pai tem do Filho, portanto, não é uma imagem intelectual
acidental, como acontece em nós, ao fazermos uso de nossa razão. O conhecimento
do Pai é substancial e amoroso, através do qual, por geração, Ele dá sua
própria essência ao Filho. Este, por sua vez, com amor substancial e infinito
também, restitui ao Pai o que d’Ele recebe; e tão rico é esse amor mútuo que
dele procede o Espírito Santo. Ora, aí está o padrão do conhecimento de Jesus a
cada um de nós. Por isso nada de nosso exterior ou interior — seja-nos nocivo
ou útil, nossas enfermidades físicas ou espirituais, seus remédios, etc. — nada
foge à sua onisciência. Não há em Jesus uma fímbria sequer de frieza nesse
conhecimento em relação a nós, como Ele mesmo disse e realizou na figura do Bom
Pastor, aquele que dá a vida por suas ovelhas.
Por outro lado, as ovelhas
seguem o Pastor. Pela sua graça, conhecem as maravilhas que estão n’Ele, sua
doutrina dotada de potência, sua vida, sua misericórdia, sua sabedoria, numa
palavra, sua humanidade e divindade. E, por isso, ao ouvirem sua voz, elas O
seguem, como Saulo no caminho de Damasco (At 9, 5-9) ou como Madalena ao ser
chamada pelo nome, junto ao Sepulcro do Senhor (Jo 20, 16). Portanto, ao
conhecê-Lo, seguem-No no cumprimento de seus desígnios: “Aquele que diz
conhecê-Lo e não guarda os seus mandamentos é mentiroso e a verdade não está
nele” (1 Jo 2, 4). Quando ouvem sua voz, enchem-se de amor pelo Pastor, a ponto
de estarem dispostas a entregar suas vidas por Ele, e ardem do desejo de que
Ele inabite em suas almas.
A palavra de São Paulo
“A ira de Deus se manifesta do alto do céu
contra toda a impiedade e perversidade dos homens, que pela injustiça
aprisionam a verdade. Porquanto o que se pode conhecer de Deus eles o lêem em
si mesmos, pois Deus lho revelou com evidência. Desde a criação do mundo, as
perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam
visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar.
Porque, conhecendo a Deus, não O glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças.
Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o
coração insensato. Pretendendo-se sábios, tornaram-se estultos. Mudaram a
majestade de Deus incorruptível em representações e figuras de homem
corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis” (Rom 1, 18-23).
Ninguém consegue arrebatar alguma ovelha ao Bom
Pastor
28 Eu lhes dou a vida eterna;
elas jamais hão de perecer, e
ninguém as roubará de minha mão.
Aqui, Jesus passa a Se
representar, já não só como o Pastor, mas também como o pasto, pois confere às
ovelhas sua própria vida. Levemos em conta que até mesmo a vida física delas é
alimentada por um “pasto”, criatura sua, pois nada existe que não tenha tido
n’Ele sua origem. Ademais, elas são nutridas espiritualmente através de sua
palavra, dado que, conforme Ele mesmo diz, “nem só de pão vive o homem, mas de
toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4). E, acima de tudo, pela graça
(semente da glória eterna), em função da qual a própria vida de Cristo se
introduz em suas almas e é alimentada pelos sacramentos, em especial pela
Eucaristia. Assim, a espiritualidade delas vai-se robustecendo e sendo
vivificada n’Ele. Sua própria carne, sangue, alma e divindade constituem o
insuperável alimento da vida de suas ovelhas. E na eternidade, a graça se
transformará em glória, recebendo d’Ele sua própria vida.
Que terão entendido os fariseus
de todo esse universo de extraordinária riqueza? Não é difícil conjeturar, pois
quem não possui a vida eterna conferida pelo Pastor, como poderá compreender
algo desses esplendores? Ora, ao afirmar que dá a vida eterna às suas ovelhas,
Ele deixa entrever que não entrega essa vida àquelas que não são de seu redil;
ao mesmo tempo, declara novamente sua essência divina, uma vez que nenhuma
criatura, por mais excelente que possa ser — incluindo os anjos —, jamais terá
o poder de conferir tão insuperável dom. Entrar na vida eterna significa estar
livre de todos os tormentos e paixões: ambições, invejas, ódios, dores, etc.,
como também ter sido perdoado de todos os pecados e desvarios. Entretanto — Oh,
mistério da iniquidade —, os fariseus não queriam se beneficiar desses dons
que, como a todas as pessoas, lhes era oferecido.
Mas essa é também a situação
das ovelhas pertencentes ao rebanho de Jesus quando O rejeitam. “Cristo,
naquilo que Lhe cabe, dá a vida eterna a suas ovelhas, e nenhuma delas perecerá
por culpa do pastor; aquela que se perder, será por sua própria culpa. Também a
graça que Cristo dá nesta vida a suas ovelhas é suficiente, por sua natureza,
para levá-las à vida eterna, e se algumas não chegam lá é por culpa de si
próprias, por não quererem seguir a Cristo” (8).
As ovelhas de Jesus estão em
sua posse; nem os homens, nem os demônios conseguem, quer seja por força, quer
por subterfúgios, arrancá-las de suas mãos onipotentes. “Se perecerem será pela
própria vontade delas, não por falta de poder d’Ele” (9). Na afirmação de
Cristo que aqui analisamos, Ele se manifesta “suficientemente forte e poderoso
para que suas ovelhas possam entrar, graças a Ele, na vida eterna, livrando-as
antes de qualquer perigo” (10).
29 Meu Pai, que mas deu, é maior que todas as coisas; e ninguém pode arrebatá-las
da mão de meu Pai.
Dissentem entre si autores de
grande peso a propósito das traduções latina e grega deste versículo. A
primeira se concentra nas coisas concedidas pelo Pai a seu Unigênito: “Meu Pai,
o que me deu é maior que todas as coisas, e ninguém as pode arrebatar de minhas
mãos.”. A outra coloca o Pai como sendo o objeto da comparação feita por Jesus
(vide formulação acima). Uma vez que não há unanimidade de interpretação,
preferimos a formulação latina: “todas as coisas”, ou seja, “a Igreja, que Ele
Me entregou para que Eu a regesse. As ovelhas que Me deu para que as
apascentasse. É maior, isto é, mais caro, mais digno de apreço que qualquer
outra coisa” (11). Assim, uma alma que se entrega a Jesus pela virtude da fé,
amando-O sobre todas as coisas e sendo perseverantemente fiel, deve estar
convicta de que tudo lhe vem do Pai, pelos méritos do Filho.
Continua no próximo post.
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