Continuação dos comentários ao Evangelho – XV Domingo do Tempo Comum - Lc 10, 25-37- Ano C - 2013
Até os fariseus se preocupavam com a vida
eterna... E hoje?
26 Jesus respondeu-lhe: “O que é que está escrito na
Lei? Como lês tu?” 27 Ele respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu
entendimento, e o teu próximo como a ti mesmo.”
Em Marcos encontramos idêntica
pergunta feita pelo moço rico, à qual Jesus responde com um elenco sintético
das virtudes obrigatórias para todos (cf. 10, 17ss). No caso presente, o doutor
da Lei não obtém d’Ele senão uma outra interrogação como resposta. O Divino
Mestre lhe propicia a prática da virtude da humildade, remetendo-o ao primeiro
Mandamento da Lei de Deus, fato desagradável para um teólogo de fama: o ter de
retornar ao Catecismo. Esse procedimento de Jesus não poderia ser melhor, pois
desse modo facilitava ao seu interlocutor um passo a mais na sua vida
espiritual: o verse na contingência de repetir a frase que todo judeu recitava
duas vezes ao dia: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a
tua alma, com todas as tuas forças” (Dt 6, 5). E como não lhe ficaria bem dizer
tão pouco, ele resolve acrescentar um complemento para, talvez, fazer assim
notar diante dos outros sua erudição: “Amarás teu próximo como a ti mesmo” (Lv
15, 18). Com sabedoria comenta este versículo o famoso Maldonado: “Com admirável prudência, Cristo remete para
a Lei aquele doutor que fingia ignorância e pretendia explorar sua doutrina. Costumava
assim proceder quando Lhe faziam perguntas capciosas, para atenuar o efeito
desagradável de sua resposta. Remetia, pois, para a Lei, e era esta que
condenava quem dela se vangloriava” (2).
Se fôssemos nos deter na
consideração de cada uma das palavras do Deuteronômio (6, 5) espaço não
haveria. Basta-nos saber que o verbo empregado nas versões latinas, não é amare
mas diligere. Este termo diz respeito ao amor sentido que resulta da soma da
vontade espiritual e do sentimento.
Apesar do lamentável estado
moral e espiritual do povo naquelas circunstâncias históricas, as pessoas se
colocavam diante da problemática da salvação eterna: “... que devo fazer para
possuir a vida eterna?” Muito diferentemente de nossos dias, pois quem hoje se
preocupa com seu destino após a morte? Atualmente, o empenho por conservar não
só a saúde, como também a beleza, uma bem sucedida situação financeira, etc.,
absorve todas as atenções; o nosso futuro após ultrapassarmos as barreiras do
tempo é matéria de total desinteresse. Assim, os patrões não zelam pela
formação espiritual de seus empregados; os pais, pela de seus filhos; os
professores, pela de seus alunos; etc. Rompem com o gravíssimo dever imposto a
eles por Deus de serem mestres junto a outros...
São Basílio, atendendo às
aspirações dos fiéis de seu tempo, deixounos uma belíssima interpretação a
respeito do amor a Deus: “Se alguém nos
perguntar como se pode adquirir o amor divino, responderemos que não se aprende
este amor. Não aprendemos de outrem a nos alegrarmos com a presença da luz, nem
a amar a vida, nem a amar nossos pais ou nossos amigos; nem, muito menos,
podemos aprender as regras do amor divino; mas há em nós um sentimento íntimo,
o qual tem suas causas intrínsecas e nos predispõe a amar a Deus. E quem
obedece a esse sentimento põe em prática a doutrina dos preceitos divinos e
atinge a perfeição da divina graça. Amamos naturalmente o bem; amamos também
nossos próximos e parentes; ademais, damos espontaneamente aos benfeitores todo
o nosso afeto. Se, pois, o Senhor é bom, e todos desejam o bom, aquilo que se
aperfeiçoa por nossa vontade reside naturalmente em nós. A Ele, embora não O
conheçamos por sua bondade, no simples fato de que d’Ele procedemos, temos
obrigação de amá-Lo sobre todas as coisas, como sendo o nosso princípio. É
também maior benfeitor do que todos os que se amam naturalmente. Por
conseguinte, o primeiro e principal mandamento é o de amar a Deus” (3).
Quem mais próximo do que Jesus?
28 Jesus disse-lhe: “Respondeste bem: faze isso e
viverás.” 29 Mas ele, querendo justificar-se, disse a Jesus: “E quem é o meu
próximo?”
O pobre doutor da Lei se via
numa situação de inferioridade — muito útil, aliás, para a sua vida espiritual
— e procurou justificar-se, pois nada pior do que o silêncio diante do público
que o circundava. Qualquer bobagem cairia melhor. O próprio Pilatos, em
circunstâncias análogas, também optou por perguntar : “O que é a verdade?”
“Finge, pois, o doutor que não está perguntando uma coisa tão vulgar e conhecida
de todos, mas sim um ponto difícil e discutido entre os mais insignes doutores
(...). Por outro lado, Santo Ambrósio, Teofilato, Eutímio e (segundo São Tomás)
São Cirilo opinam que ele propôs formalmente essa questão por pensar que
próximos eram só os justos com respeito a ele, que se considerava justo”
(4).
Em síntese, o seu desejo de
demonstrar ter inteiro cabimento sua primeira pergunta o leva a enunciar esta outra
que, nos dias atuais, com facilidade qualquer criança de Catecismo responderia.
Entretanto, naquela quadra histórica constituía uma questão inextricável. As
origens familiares, as classes sociais, o regionalismo, a nacionalidade, a
raça, eram fatores de separações estanques. Não nos esqueçamos de mencionar a
terrível discriminação da escravidão, consagrada em todas as legislações da
época. Ora, o povo mais afetado por esse espírito de separatismo era o judeu.
Basta correr os olhos pelo Talmud para comprovar os extremos a que chegou
contra os goyim, ou seja, todos os nãojudeus. Muito comum era o juízo de que só
os do povo eleito eram chamados à salvação eterna. Ademais, baseados no
Levítico: “não guardarás rancor contra os
filhos de teu povo” (Lv 19,18), não concebiam que a amizade pudesse
transpor os limites da nacionalidade.
Porém, “daí não se segue que ele tenha feito a pergunta com sinceridade e
desejo de aprender, porque, embora ignorando, estava convencido de que sabia”
(5) e a tal ponto que a Escritura não deixava margem a dúvida de como tratar ao
não-judeu: “Se algum estrangeiro habitar
na vossa Há em nós um sentimento íntimo que terra, e morar entre vós, não o
impropereis; mas esteja entre vós como um natural; e amai-o como a vós mesmos;
porque também vós fostes estrangeiros na terra do Egito” (Lv 19, 33-34).
Por outro lado, vemos esse
doutor numa situação paradoxal: “Naquele
mesmo instante se encontrava um próximo extraordinariamente especial, ou seja,
o próprio Deus! Por isso, ao fazer essa pergunta, deixa claro (...) que não
conhecia seu próximo, porque não acreditava em Cristo, e quem não conhece Cristo
desconhece a Lei; porque, ignorando a verdade, como pode conhecer a Lei que
anuncia a verdade?” (6).
Talvez a isso o tivesse levado
seu orgulho pouco ou nada combatido. “Elogiado
pelo Salvador, por ter respondido bem, o doutor da Lei encheu-se de soberba,
não acreditando existir alguém que pudesse ser seu próximo, como se não
houvesse quem fosse capaz de equiparar-se a ele em justiça. Por isso diz: ‘Mas
ele, querendo justificar-se, disse a Jesus: E quem é o meu próximo?’
Assediavam-no, por assim dizer, alternativamente, os vícios: após a falácia com
que fizera a pergunta, tentando, cai na arrogância. Ao perguntar: ‘Quem é o meu
próximo?’, já se mostra vazio do amor ao próximo e, em consequência, revela-se
vazio do amor divino, pois, não amando o irmão a quem vê, não pode amar a Deus a
quem não vê” (7).
Os escribas e fariseus — que
alimentavam entre si, dia-a-dia, sua indignação contra os gentios, como até
mesmo à própria plebe judaica — iriam ouvir do Mestre uma clara e irrefutável
lição, cheia de calor, de como se deve tratar o próximo...
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