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terça-feira, 3 de setembro de 2013

XXIII Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 14, 25-33

Continuação dos comentários ao Evangelho 23º Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 14, 25-33
Lucidez e prudência
Ensinar por meio de parábolas é uma constante da divina didática. Assim, vai Nosso Senhor recorrer agora a duas, para tornar vivo aos olhos daquela multidão quanto o segui-Lo não exige apenas esforço e abnegação, mas também planejamento lúcido e cuidadosa execução, isto é, “prudência e resolução em calcular o esforço que isso nos custará”.14
Como não poderia deixar de ser, as duas imagens foram escolhidas com divina sabedoria, de forma a ilustrar com perfeição o ensinamento dos versículos anteriores. A este propósito, comenta Maldonado: “Cristo propôs as parábolas da torre e da guerra, de preferência a outros temas, por tratar-se de empresas bem difíceis e caras levantar torres e empreender guerras, as quais requerem grande e diligente preparação”.15
Os cálculos para construir uma torre ou travar uma guerra
28 “Com efeito: qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário 29 ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: 30 ‘Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!’”.
Como bem observou Maldonado, “calcular os gastos” significa aqui preparar-se com cuidado, inclusive detendo-se para ouvir prudentes conselhos. É o que todo homem deve fazer nas importantes encruzilhadas da vida: medir as dificuldades antes de lançar-se por uma ou outra via, sempre de acordo com a razão, nunca guiado apenas pelos sentimentos ou pelos impulsos. Mais importante ainda, precisa decidir e agir tendo em vista, sobretudo, a vida eterna, e não só os interesses terrenos, passageiros por definição.
31 “Ou ainda: Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil?”.
As guerras entre pequenos estados eram comuns na Antiguidade. Portanto, Nosso Senhor apresentava nessa parábola uma realidade bem conhecida de todos os Seus ouvintes.
Ora, na batalha para alcançar o Reino dos Céus, entra o homem em condições muito desfavoráveis. Dada a natureza decaída em consequência do pecado original, cada um tem no seu interior terríveis inimigos: “o açoite da carne, a lei do pecado que impera em nossos membros, e varias paixões”.16 A eles se acrescentam “os principados, as potestades, os dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos malignos espalhados pelos ares” (Ef 6, 12).
Visando tornar notória essa desproporção de forças, Santo Agostinho assim interpreta o sentido da parábola: “Os dez mil homens com os quais ele deve combater o rei que dispõe de vinte mil representam a simplicidade do cristão, que precisa lutar contra a falsidade do demônio, isto é, com seus dolos e falácias”.17
Tratado de paz com o Supremo Soberano
32 “Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz”.
Por seu lado, São Gregório Magno dá desta parábola uma interpretação de caráter escatológico, segundo a qual o rei que se aproxima seria Aquele que virá no fim dos tempos para julgar os vivos e os mortos.18
Assim, na perspectiva da chegada do Supremo Soberano, em comparação ao qual nada somos nem podemos, caber-nos-ia apenas enviar mensageiros para Lhe solicitar a paz. São estes os nossos Anjos da Guarda, os nossos intercessores celestes e, sobretudo, Nossa Senhora. Pois, como pergunta o padre Duquesne, “quem somos nós para nos apresentarmos diante de Deus e ter a ousadia de com Ele negociar a paz? Que temos para oferecer-Lhe?”.19
Quanto às condições da paz, já foram elas enunciadas nos primeiros versículos deste Evangelho: trata-se de renunciar a tudo e abraçar a Cruz para seguir o Divino Redentor.
O único cálculo permitido ao verdadeiro discípulo
33 “Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser Meu discípulo!”.
Nessas duas parábolas, Nosso Senhor torna evidente quão necessário é fazer bem os cálculos antes de encetar algum empreendimento, assumir uma responsabilidade ou travar uma batalha terrena.
Ora, neste versículo, segundo a interpretação de Santo Agostinho, estaria declarado o sentido de ambas, pois, afirma ele, “o dinheiro para edificar a torre e a força de dez mil homens para enfrentar os vinte mil combatentes do outro rei, não têm outro significado senão o de cada um renunciar a tudo quanto possui”.20 E acrescenta o santo Bispo de Hipona: “O anteriormente dito concorda com o que se diz agora, porque na renúncia de cada qual a tudo quanto possui está contido também o ódio a seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até à sua própria vida. Todas essas coisas são próprias de cada um, e constituem obstáculo e impedimento para obter, não o temporal e transitório, mas aquilo que é comum a todos e subsistirá sempre”.21
Há, em suma, apenas um caminho para nos tornarmos verdadeiros discípulos de Jesus: renunciar totalmente aos afetos desordenados e ao apego aos bens terrenos, evitando que eles atuem como amarras para nossa vida espiritual ou de pesados lastros para nossa alma. Sem nos desprendermos de forma plena e completa de quanto nos separa de Cristo, jamais alcançaremos o Reino dos Céus.
Importante é notar, ademais, como faz o Cardeal Gomá, que não apenas os clérigos e religiosos devem ser discípulos de Jesus, mas sim todos os batizados: “Com os exemplos da torre e do rei, não quer o Senhor significar que cada um de nós seja livre de tornar-se ou não Seu discípulo, como o homem da torre era livre de lançar ou não os alicerces. Tenciona Ele ensinar-nos a impossibilidade de agradar a Deus em meio às coisas que distraem a alma e nas quais ela corre o risco de sucumbir, pela astúcia do demônio”.22
São Beda faz uma distinção entre o dever das almas chamadas ao estado de vida consagrada e a obrigação de todos os fiéis: “Há uma diferença entre renunciar a todas as coisas e abandoná-las: compete a um pequeno número de perfeitos abandoná-las, ou seja, pôr de lado os cuidados do mundo; e cabe a todos os fiéis renunciar a elas, isto é, possuir as coisas terrenas de maneira tal que elas não os prendam ao mundo”.23
Os apegos desordenados roubam-nos a paz de alma
O Evangelho ora comentado torna patente o quanto esse desapego radical e completo é a pedra fundamental de nossa vida interior, quer constituamos família, quer façamos parte do Clero, quer estejamos consagrados a Deus em algum instituto religioso.
Nesse sentido, podemos afirmar que a liturgia do 23º Domingo do Tempo Comum é um convite ao desprendimento: “Quem não carrega sua cruz e não Me segue, não pode ser Meu discípulo”. Não significa isso que precisamos ser flagelados, coroados de espinhos ou pregados na cruz, como foi Nosso Senhor Jesus Cristo. A cruz que Ele pede de nós consiste principalmente em vivermos desprendidos de tudo quanto é terreno, tal qual uma águia que voa sem amarras para, nas alturas, melhor contemplar o sol.

Como tantas vezes comprovamos na vida, o apego desordenado gera aflições, inseguranças e receios que nos roubam a paz de alma. Portanto, mesmo o homem não chamado à vida religiosa deve fazer tudo com o coração posto nas coisas de Deus, inclusive ao cuidar dos negócios e da administração dos seus bens. Esse desprendimento é condição para seguir de perto a Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim agindo, a alma experimentará a verdadeira felicidade, prenunciativa da alegria que terá no Céu.
1 CONSTITUIÇÕES, art.26: “Nós, clérigos, devemos viver do Altar e do Evangelho, e de quanto nos oferecerem espontaneamente os fiéis, sem pedir esmola alguma aos seculares, nem diretamente nem por intermédio de outrem. Toda a nossa esperança deve estar posta na palavra de Cristo Senhor, que diz: ‘Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a Sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo’”.
2 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.III, p.283.
3 As duas traduções são corretas, pois o verbo grego μισεω, como o seu equivalente hebreu śānā’, abarca uma gama de significados que vai desde amar menos, detestar, até odiar (cf. BALZ, Horst; SCHEIDER, Gerhard (Eds.). Diccionario exegético del Nuevo Testamento. 2.ed. Salamanca: Sígueme, 2002, col.295).
4S ÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.101, a.4, resp.
5 BALZ e SCHEIDER, op. cit., col.295.
6 GUARDINI, Romano. O Senhor. Rio de Janeiro: Agir, s/d, p.293.
7 Idem, ibidem.
8 SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q.101, a.4, ad.1.
9 Idem, II-II, q.26, a.7, ad.1.
10 Idem, II-II, q.34, a.3, ad.1.
11 DUQUESNE. L’Évangile médité. Lyon-Paris: Perisse Frères, 1849, v.III, p.104.
12 Idem, p.106.
13 Idem, ibidem.
14 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.282.
15 MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.642.
16 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Commentaria in Lucam, sermo 105: PG 72, 796.
17 SANTO AGOSTINHO. Quæstiones Evangeliorum, l.2, c.31: PL 35, 1343.
18 Cf. SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homiliarum in Evangelia, hom. 37, c. 6: PL 76, 1277-1278.
19 DUQUESNE, op. cit., p.119.
20 SAN AGUSTÍN, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
21 Idem.
22 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.285.
23 SAN BEDA, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea

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