Continuação dos comentários ao Evangelho 23º Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 14, 25-33
Verdadeiro sentido do verbo odiar
Ora, logo a seguir, Guardini
acrescenta, com muita acuidade, que a exigência de odiar os parentes quando
eles nos afastam de Deus “é antinatural, e provoca a tentação de guardar os
parentes naturais e de abandonar Jesus”.7
É visando tornar clara a
necessidade que o homem tem de fazer violência contra si mesmo para ser
verdadeiro discípulo de Cristo, que a Vulgata, São Tomás, São Gregório Magno e
muitos outros comentaristas recorrem a um termo tão radical quanto o verbo
odiar: “Gregório interpreta esta palavra do Senhor no sentido de que ‘devemos
odiar nossos pais e deles fugir, ignorando-os, quando os temos como adversários
no caminho de Deus’. Se, de fato, nossos pais nos induzirem ao pecado e nos
afastarem do culto divino, no que concerne a este ponto específico devemos
odiá-los e abandoná-los”.8
Portanto, é natural, legítimo e
até um dever o amor a irmãs e irmãos, filhas e filhos, pai ou mãe; mas devemos
repudiá-lo com toda energia, se ele nos impede de seguir a Cristo. Mais uma
vez, é São Tomás quem esclarece: “Não nos é ordenado odiar nossos próximos
porque eles são nossos próximos, mas somente os que nos impedem de nos unirmos
a Deus. Nisso eles não são nossos próximos, mas inimigos, conforme o livro de
Miqueias: ‘Os inimigos do homem, os seus próprios familiares’ (Mq 7, 6)”.9
E, mais adiante, acrescenta:
“Portanto, deve-se dizer que, segundo o mandamento de Deus, os pais devem ser
honrados enquanto estão unidos a nós pela natureza e por afinidade, como mostra
o livro do Êxodo. Mas devemos odiá-los se forem um obstáculo em nossa ascensão
à perfeição da justiça divina”.10
Fica, assim, posta a questão no
seu verdadeiro equilíbrio. E pode a Santa Igreja ensinar com toda autoridade
essa doutrina, pois foi ela quem evangelizou os povos pagãos e consolidou no
mundo os princípios basilares da família monogâmica e indissolúvel, por sua
pregação e pela administração do Sacramento do Matrimônio, instituído por Nosso
Senhor Jesus Cristo. Com isso, estabeleceu em situação digna na sociedade a
mulher e os filhos, fazendo cessar abusos vigentes no mundo antigo, como o
“direito” do pai matar os filhos ou o marido repudiar a esposa. Entretanto, ao
mesmo tempo, enfatiza ela que tudo, até mesmo a família, está subordinado ao
serviço e à glória de Deus.
Ainda a propósito do verbo
odiar, aduz o padre Duquesne um importante esclarecimento: “O termo odiar não
significa que devemos fazer ou desejar-lhes o mal; mas ele assinala o ardor, a
coragem, a força com a qual devemos lhes resistir, caso se oponham à nossa
salvação, nos arrastem para o mal, nos demovam de assumir o estado ao qual Deus
nos chama, ou queiram engajar-nos naquele ao qual Deus não nos chama; caso nos
impeçam de abraçar a verdadeira Fé, e se esforcem por nos reter ou nos lançar
no erro”.11

O prêmio virá na glória eterna
27 “Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de
Mim, não pode ser Meu discípulo”.
Estas palavras de Jesus
descartam de vez todas as esperanças triunfalistas que a maior parte dos judeus
tinha a propósito do reino messiânico. Com efeito, em toda a Sua pregação,
jamais oferecera Nosso Senhor a plenitude da felicidade nesta vida, mas sim a
glória eterna, cuja via passa pela abnegação e pelo sacrifício. Per crucem ad
lucem (é pela cruz que se chega à luz), reza a conhecida divisa latina.
Bem ilustra o Apóstolo essa
necessidade de sacrifício e mortificação, recorrendo a um exemplo especialmente
vivo para os seus seguidores em Corinto: “Todo atleta se impõe todo tipo de
disciplina. Eles assim procedem para conseguir uma coroa corruptível. Quanto a
nós, buscamos uma coroa incorruptível! Por isso eu corro, não como às tontas.
Eu luto, não como quem golpeia o ar. Trato duramente meu corpo e o subjugo,
para não acontecer que, depois de ter proclamado a mensagem aos outros, eu
mesmo seja reprovado” (I Cor 9, 25-27).
Ainda sobre este versículo do
Evangelho, interessante é recordar uma piedosa consideração do padre Duquesne:
“Comparemos nossa cruz com a de Jesus Cristo e as dos mártires, e
envergonhemo-nos de nossa covardia!”.12 Não cabe, portanto, levá-la a
contragosto, reclamando do seu peso ou manifestando amargura pelos sofrimentos
que ela nos traz. Quem assim procede, arrasta a cruz, não a carrega; em
consequência, não pode ser considerado discípulo do Mestre. Seguir Nosso Senhor
não significa apenas andar fisicamente atrás d’Ele, como faziam muitos naquela
multidão, mas sim “imitar Seus exemplos, praticar Suas virtudes”, acentua o
mesmo padre Duquesne.13
Continua no próximo post
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