Um novo conceito
de autoridade ( Continuação dos comentários ao Evangelho Mc 9, 30-37)
35“Sentando-se,
chamou os Doze e disse-lhes: ‘Se alguém quer ser o primeiro, seja o último de
todos e o servo de todos’”.
O Mestre
conhecia bem aqueles que escolhera, pois, conforme comenta o padre Lagrange,
Ele “não se espanta com a preocupação dos
discípulos, nem contesta o princípio da hierarquia, mas insinua o espírito novo
do qual deve estar animado quem tem cargo de direção. Há certamente aqui a
previsão de outra ordem de coisas”.12
Com Suas
palavras, Jesus não condena o desejo de obter a primazia, mas põe uma condição:
para ser o primeiro, é preciso ser “o
último de todos e o servo de todos”. Essa afirmação abria um panorama
completamente novo para os Apóstolos, os quais compartilhavam do conceito de
autoridade comum e corrente naquela época: quem é mais forte, mais capaz, mais
inteligente, mais rico, ou mais esperto, esse manda e os outros obedecem.
Perante essa
visão, Nosso Senhor declara qual é a regra de governo que deverá vigorar na Era
Cristã: “O novo Reino que quero instaurar
não será como os reinos da terra. O que deve animar Meus discípulos não é o
espírito de ambição, a procura das grandezas. Pelo contrário, a primeira
condição, a condição fundamental, para almejar o primeiro posto no Reino
messiânico é a humildade, o menosprezo das honras, o desinteresse de quem se
esquece de si mesmo para dedicar-se ao serviço dos irmãos”.13
Humildade,
menosprezo das honras, desinteresse por si mesmo e dedicação aos irmãos: são
estas as características de quem deve mandar de acordo com o espírito de Jesus.
É a precedência da virtude e da inocência na sociedade. Nada mais oposto à ira,
à inveja e às rivalidades que tanto atormentam o homem depois do pecado
original!
A esse respeito,
transcreve o padre Maldonado expressivo comentário do Bispo e mártir São
Cipriano: “Com Sua resposta, cortou Jesus
qualquer emulação e extirpou toda ocasião e pretexto da mordaz inveja. Não é
lícito ao discípulo de Cristo ter essas rivalidades e invejas, nem pode existir
entre nós peleja para sobressair-se, pois aprendemos que o caminho para a
primazia é a humildade”.14
Convém notar,
por fim, que Jesus “sentou-Se” antes
de fazer esta solene declaração, “como
para julgar no Seu Tribunal e ensinar aos Apóstolos, da Sua Cátedra, algo grave
e importante que merecia ser dito não de pé e como que de passagem, mas sentado
e de propósito, com plena advertência e consideração”.15
Governar
em função da inocência
36“E tomando um
menino, colocou-o no meio deles; abraçou-o...”.
Comentam
extensamente os exegetas este episódio no qual Jesus chama para junto de si uma
criança, relacionando-o com a narração de São Lucas, que no final do seu relato
reproduz estas palavras do Salvador: “Pois
quem dentre vós for o menor, esse será grande” (Lc 9, 48).
As
crianças estão isentas de inveja e vanglória
Ressalta-se, em
geral, como o Divino Mestre serve-Se deste eloquente recurso pedagógico para
fazer ver aos discípulos, cegos pelo desejo de supremacia, a necessidade de
serem simples e humildes. Pois, como observa o Crisóstomo, “o menino está isento de inveja, de vanglória
e de qualquer ambição de primazia”.16
Por sua vez,
Beda o Venerável ressalta o quanto Deus tem em alta estima a virtude da
humildade: “Pelo qual, ou simplesmente
aconselha aos que querem ser os primeiros que recebam, em honra dEle, os pobres
de Cristo, ou que sejam como meninos, a fim de conservarem a simplicidade sem
arrogância, a caridade sem inveja e a dedicação sem ira. O fato de abraçar o
menino significa que os humildes são dignos de Seu abraço e de Seu amor”.17
Mostra assim
Jesus, neste episódio, quanto o verdadeiro discípulo não deve estar preocupado
se será, ou não, maltratado, esquecido, posto de lado. Ele precisa apresentar-se
sem qualquer pretensão, nem orgulho, mas, pelo contrário, admirando as
qualidades alheias. Quem assim age será o primeiro a receber a misericórdia de
Deus. Aquele que se tem por último e se considera o menor será quem mais recebe
da Divina Providência.
Pode-se
conjecturar a profunda perplexidade dos Doze naquele momento. Queriam eles
ocupar posição de destaque, Jesus aponta-lhes a necessidade de procurar o
último lugar. Aspiravam a um reino messiânico glorioso, Jesus alerta-os sobre
Sua Paixão e morte na Cruz... O choque de mentalidades vai-se tornando cada vez
mais patente. Porém, tudo é dito com doçura, sem acrimônia, no momento
oportuno, de forma a que as divinas palavras do Mestre penetrem beneficamente
nos espíritos. Manifesta Ele aqui, uma vez mais, a admirável e delicada arte de
corrigir, que servirá de modelo a todos quantos tiverem o encargo da direção
das almas.
Continua no próximo post.
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