Comentários ao Evangelho 31º Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013 - Lc 19, 1-10
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Evangelho Lc 19, 1-10
“Naquele tempo, 1 Jesus
tinha entrado em Jericó e estava atravessando a cidade. 2 Havia ali
um homem chamado Zaqueu, que era chefe dos cobradores de impostos e
muito rico. 3 Zaqueu procurava ver quem era Jesus, mas não conseguia
porque era muito baixo. 4 Então, ele correu à frente e subiu numa
figueira para ver Jesus, que devia passar por ali. 5 Quando Jesus
chegou ao lugar, olhou para cima e disse: ‘Zaqueu, desce depressa!
Hoje Eu devo ficar na tua casa’. 6 Ele desceu depressa, e recebeu
Jesus com alegria. 7 Ao ver isso, todos começaram a murmurar,
dizendo: ‘Ele foi hospedar-Se na casa de um pecador!’. 8 Zaqueu
ficou de pé, e disse ao Senhor: ‘Senhor, eu dou a metade dos meus
bens aos pobres e, se defraudei alguém, vou devolver quatro vezes
mais’. 9 Jesus lhe disse: ‘Hoje a salvação entrou nesta casa,
porque também este homem é um filho de Abraão. 10 Com efeito, o
Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido’” (Lc
19, 1-10).
O homem tem necessidade de
admirar
O final do século XIX acompanhou assombrado o ingente
esforço de uma menina norte-americana que marcaria a História.
Acometida de grave doença aos 18 meses de idade, Helen Adams Keller
(1880-1968) perdeu completamente a visão e a audição. Ficou,
assim, reduzida a um triste isolamento, sem possibilidade de conhecer
o exterior, a não ser pelo tato, olfato e paladar.
Essa trágica e silenciosa noite de sua mente poderia
ter se perpetuado por toda a vida, se não fosse o providencial
encontro com uma genial educadora, Anne Mansfield Sullivan, que
conseguiu ensinar-lhe a linguagem das mãos, o alfabeto braile e, por
fim, a falar fluentemente.
Depois de indizíveis dificuldades, Helen chegou a
dominar o francês e o alemão, com boa pronúncia. Cursou faculdade,
percorreu o mundo dando palestras e escreveu livros. Anos a fio, ela
desenvolveu um quase inacreditável labor, impelida pela ânsia de se
relacionar com os outros, movimento natural de todo ser humano,
dotado de instinto de sociabilidade.
Ora, assim como pelo heliotropismo as plantas crescem à
procura da luz, também as almas necessitam abrir-se à contemplação
das criaturas para, a partir delas, subir até o Criador.
Não foi diferente com Helen Keller, a qual crivava a
sua mestra com perguntas como estas: O que faz o sol ser quente? Onde
estava eu antes de vir para minha mãe? Os passarinhos e os pintos
saem do ovo: de onde vem o ovo? Quem fez Deus? Onde está Deus? A
senhora já viu Deus?1
Estas são questões que revelam como a alma aspira
inelutavelmente chegar à Causa Primeira de tudo, a partir das causas
segundas. Pois há em nós uma inata tendência para Deus — que,
por analogia, poderíamos chamar de teotropismo — a qual nos leva a
fazer correlações, transcendendo da escala natural à sobrenatural.
Nesse sentido, ensina São Tomás: “permanece no homem, ao conhecer
o efeito, o desejo de saber que este efeito tem uma causa e de saber
o que é a causa. Esse desejo é de admiração e causa a
inquirição”.2
Ora, como tudo quanto há no universo espelha em alguma
medida o Criador, o movimento ordenado da alma é deixar-se atrair
pelos reflexos de verdade, beleza e bem, presentes nas criaturas.
Assim, todos devemos procurar tornar nossa alma muito
propensa à admiração, de forma a, deparando-nos com algo que é
elevado, santo, nobre ou simplesmente reto, nos encantarmos e
remontarmos à Causa suprema. E, com toda a evidência, essa
admiração cabe, sobretudo, em relação ao Homem-Deus, à sua Mãe
Santíssima e à Santa Igreja.
Um publicano chamado Zaqueu
“Naquele tempo,1 Jesus
tinha entrado em Jericó e estava atravessando a cidade”.
Nosso Senhor Se dirige a Jerusalém para sofrer a
Paixão. Ainda pouco antes de chegar a Jericó, o tinha anunciado aos
seus discípulos pela terceira vez, mas eles “nada compreenderam de
tudo isso: o sentido da palavra lhes ficava encoberto e eles não
entendiam o que lhes era dito” (Lc 18, 34).
Pelo contrário, os seguidores de Jesus, entre eles os
próprios Apóstolos, julgavam estar Ele a caminho da Cidade Santa
para fazer um grande milagre, pelo qual Israel seria libertado do
jugo romano.
É nesse clima de expectativa e otimismo que o Divino
Mestre vai ser recebido em Jericó.
Ódio dos judeus pelos
publicanos
2“Havia ali um homem
chamado Zaqueu, que era chefe dos cobradores de impostos e muito
rico”.
Inteligentes, sagazes e dotados de forte senso
organizativo, os romanos instituíram como cobradores de impostos, em
Israel, funcionários judeus. Por conhecerem melhor seus
conterrâneos, estavam estes em condições de garantir maior receita
para os cofres de César, apesar de um quase inevitável desvio de
recursos, pois quem se prestava a exercer essa função, naquelas
circunstâncias, não costumava primar pela retidão de alma.
Naturalmente, os judeus que aceitavam tal encargo eram
considerados traidores e “cofautores da dominação romana”,3
sendo odiados por toda a sociedade hebraica. O próprio nome da
função — publicano — despertava repulsa.
Ora, precisamente o chefe dos cobradores de impostos da
região, Zaqueu, homem muito rico, será o protagonista desta cena
evangélica. Comandar o grêmio mais detestado pelos seus patrícios
equivalia a ser considerado ladrão entre os ladrões, ou seja, líder
daqueles que faziam fortuna à custa da exploração do povo.
Podemos, portanto, bem conjecturar o quanto era ele objeto de
desprezo.
Semente de salvação
3a“Zaqueu procurava ver
quem era Jesus, ...”
Não obstante, aquele publicano vai mostrar nesta
passagem do Evangelho um fundo de alma muito bom.
Movido certamente pela graça, manifestava-se desejoso
de ver o Divino Mestre e até, se possível, Lhe dirigir a palavra.
Sentia, sem dúvida, a consciência pesada, mas ao mesmo tempo
desabrochava em seu interior uma crescente admiração por Jesus.
Como bem aponta São Cirilo, “germinava nele uma semente de
salvação”.4
“Donde vinha a um homem dessa profissão um tão vivo
desejo?”, pergunta-se o padre Duquesne. “Ah! Seu coração devia
estar agitado por numerosos movimentos os quais, sem dúvida, ele
mesmo não conseguia distinguir bem. Esse desejo, que procedia do
alto, não era sem um princípio de fé, e não podia deixar de ser
acompanhado de estima, de respeito e de amor ao Salvador”.5
Continua no próximo post
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