CONTINUAÇÃO DOS COMENTÁRIOS AO EVANGELHO – SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – Jo 3, 16-18 – ANO A
O convívio da Trindade é aberto aos homens
16c ...mas tenha a vida eterna. 17 De fato, Deus não enviou o seu Filho
ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele.
O Filho de Deus não veio para
vigiar nem recriminar, mas para nos trazer a vida eterna. O oferecimento de uma
gota de seu Sangue teria mérito infinito e seria suficiente para reparar os
crimes de toda a humanidade, desde Adão até o último homem da História. Ele,
porém, entregou tudo, inclusive sua própria carne, apenas seus ossos não Lhe
foram quebrados, para que se cumprisse a Escritura (cf. Ex 12, 46). “Tão
desfigurado estava que havia perdido a aparência humana” (Is 52, 14), sendo
comparado a um verme (cf. Sl 21, 7). Isto nos dá uma ideia da magnitude desse
desejo de nos obter a vida eterna: “O Filho, a quem o Pai não perdoa, é
entregue, mas não contra sua vontade, pois d’Ele está escrito: ‘Amou-me e Se
entregou a Si mesmo por mim’”.13
O que devemos entender por vida
eterna? Numa palavra, a vida do próprio Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, ou
seja, o conhecimento infinito do Pai a respeito de Si, pelo qual Ele gera o
Filho, e o amor entre ambos, tão profícuo, faz dele proceder o Espírito Santo,
encerrando o processo trinitário. Deus, contudo, quis abrir aos Anjos e aos homens
as portas deste convívio, da “vida íntima da Sacrossanta Trindade nas inefáveis
comunicações das três Pessoas. Pois as três, e cada uma a seu modo, contribuem
para a obra de nossa deificação. […] O Pai é quem nos adota, o Filho quem nos
torna seus irmãos e coerdeiros, o Espírito Santo quem nos consagra e nos torna
templos vivos de Deus, e vem morar em nós em união com o Pai e o Filho”,14 como
bem explica o padre Arintero. Numa só frase resume tais verdades o Doutor
Angélico, com toda a simplicidade: “A vida eterna não é outra coisa que o gozo
de Deus”.15
Ora, o acesso a este gozo nos é
franqueado pelo Sacramento do Batismo, instituído por Nosso Senhor Jesus
Cristo, cujo rito é simples e de tal maneira facilitado que — à falta de um
ministro ordenado e em caso de necessidade — pode ser ministrado Batismo de
Santo Inácio - Santuário de Loyola, Azpeitia (Espanha) por qualquer pessoa,
desde que ela queira ater-se à forma da Igreja. No momento em que é derramada a
água sobre o neófito e é pronunciada a fórmula “Eu te batizo em nome do Pai, e
do Filho, e do Espírito Santo”, opera-se um impressionante milagre, dos maiores
que há na Terra: de mera criatura, a pessoa é elevada à participação da vida de
Deus. São-lhe, ademais, infundidas as virtudes teologais — fé, esperança,
caridade — e as cardeais — prudência, justiça, fortaleza, temperança —, às
quais se acresce o enorme cortejo das demais virtudes, e todos os dons do
Paráclito. Mas, sobretudo, a alma torna-se um templo vivo onde habitam o Pai, o
Filho e o Espírito Santo.
De fato, as três Pessoas já
estavam nela, porque Deus encontra-Se real e intimamente em toda parte e em
cada criatura, por três formas: por essência, sustentando-a no ser, de modo a
não voltar ao nada; por presença, uma vez que tudo se passa ante seus olhos;
por potência, pois tudo está sujeito a seu divino poder. Entretanto, após o
Batismo, estará também presente como Pai e Amigo.
A vida divina recebida no
Batismo deve ser cultivada até desabrochar plenamente ao cruzarmos os umbrais
da morte e penetrarmos na vida eterna, prometida por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ela consiste em contemplar a Deus16 tal como Ele é (cf. I Jo 3, 2), o que seria
impossível se não fosse dada à natureza humana a luz da glória, isto é, a
própria luz de Deus. Com razão diz a Escritura: “in lumine tuo videbimus lumen
— na tua luz veremos a luz” (Sl 35, 10).
A condenação decorrente da falta de fé
18 Quem n’Ele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado,
porque não acreditou no nome do Filho Unigênito.
Neste versículo Jesus mostra
como nos salvamos ou nos condenamos, e esclarece um aspecto da teologia que não
era de inteiro conhecimento dos judeus. Eles acreditavam no Juízo Final, mas
não tinham igual certeza a respeito do juízo particular, e por isso quis Nosso
Senhor contar a parábola do rico e do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31). A Igreja
Católica ensina que “cada homem recebe em sua alma imortal a retribuição eterna
a partir do momento da morte, num juízo particular”.17 Não obstante, o Divino
Mestre declara aqui algo que transcende esta verdade: o juízo se faz no mesmo
instante em que os atos são praticados. De si, eles determinam a salvação ou a
condenação de cada um, como afirma Santo Agostinho, explicando esta passagem do
Evangelho: “A sentença ainda não está publicada, mas já está lavrada. O Senhor
sabe quem são os seus; sabe quem ficará para a coroa e quem será destinado às
chamas; na sua eira sabe o que é trigo e o que é palha, o que é a messe e o que
é cizânia”.18 Assim sendo, quem comete um pecado mortal só é salvo do juízo de Deus
e de uma condenação ipso facto porque Ele suspende a punição. O normal seria
que quando um ser inteligente e livre, como o homem, caísse numa falta grave, a
ordem do universo vulnerada se vingasse, e satanás o agarrasse e o conduzisse
para o inferno. Isto só não acontece porque Deus o impede, para dar outras
oportunidades de correção ao pecador que, na realidade, já está julgado.
Esta doutrina tem de ser clara
para não se criar uma concepção ilusória da vida, pensando ser possível levar
uma existência de quedas frequentes, seguidas de confissões sem autêntica
contrição nem propósito de emenda e, na hora da morte, receber os Sacramentos e
ir para o Céu. Este equívoco é tão antigo que já São João Crisóstomo, no século
IV, ao comentar o mesmo versículo, advertia seus contemporâneos para os riscos
de achar que “o inferno não existe, não há castigos, Deus perdoa todos os
nossos pecados”.19 Ora, é bem possível que no fogo eterno se encontrem as almas
de muitos que julgavam poder oscilar entre o pecado e o estado de graça, e de
repente foram arrebatadas por uma morte imprevista e nelas se cumpriu a palavra
de Nosso Senhor: “já está condenado”. Trata-se de uma mera coincidência? Não!
Milagre da misericórdia divina seria que isto não acontecesse, pois, como
vimos, do pecado deveria resultar a morte imediata. Nosso Senhor diz estar
condenado aquele que não crê no nome do Filho Unigênito. Ou seja, Ele quis
beneficiar-nos, oferecendo-Se por nós, mas aos que O rejeitam não será
permitido gozar do prêmio da vida eterna.
Continua no próximo post.
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