Continuação dos comentários ao Evangelho IV Domingo da Quaresma – Ano B
Pré-figura da Crucifixão
Entretanto, está
também figurada a Crucifixão, como ressaltam todos os comentaristas; por
exemplo, Santo Agostinho:
“Que significa a
serpente levantada? A morte do Senhor na cruz. A morte proveniente da serpente
foi representada pela imagem da serpente. A mordedura mortal da serpente
representa a morte vital do Senhor. Olha-se para a serpente a fim de que a
serpente não mate. Que significa isso? Olha-se para a morte, para o Senhor
morto, para que a morte não mate. Mas para a morte de quem? Para a morte da
Vida, se assim se pode dizer. (...) Cristo não é a Vida? Todavia, foi suspenso
na cruz. (...) Mas a morte foi morta na morte de Cristo, porque a Vida que foi
morta matou a morte.
“Assim como os que
olhavam para a serpente de bronze não morriam com as mordeduras das serpentes,
assim os que olham com fé para a morte de Cristo são curados das mordeduras dos
pecados. Mas aqueles eram livres da morte no tocante à vida temporal, enquanto
estes têm a vida eterna. Aqui está a diferença entre a figura e a realidade. A
figura dava a vida temporal, e a realidade dá a vida eterna” (4).
Jesus prepara as mentalidades para a aceitação do dogma
Resta dizer uma
palavra sobre a expressão “o Filho do Homem”, que aparece 82 vezes ao longo dos
Evangelhos, quase sempre saída dos adoráveis lábios de Jesus e, ademais,
exclusivamente aplicada a Ele. O Antigo Testamento traz à tona essa mesma
expressão, ora referindo-se a um simples homem, ora a um ser sobrenatural
superior a um homem comum (5).
No Cristo nós
encontramos a misteriosa união de duas naturezas— a divina e a humana — numa só
Pessoa. Era indispensável ir preparando as mentalidades para a aceitação, com
base na fé, desse altíssimo dogma. Hoje — depois de dois milênios, com toda a
tradição e o grande desenvolvimento doutrinário da Teologia — temos mais
facilidade para abraçar essa fundamental verdade revelada. Contrariamente,
naqueles tempos, a cultura religiosa prognosticava uma figura messiânica muito
diferente. O Messias deveria ser um grande condestável de nacionalidade judaica
que daria ao seu povo a supremacia sobre todas as outras nações, libertando-o
de qualquer ônus, submissão ou tributo. Sobretudo naquele momento em que os
judeus estavam subjugados política e tributariamente ao Império Romano, o termo
“Messias”, lançado ao ar, colocava em movimento uma dinâmica cadeia de
sentimentos nacionalistas.
Sapiencial emprego da expressão “Filho do Homem”
Como então utilizar a
linguagem humana para aproximar as inteligências da aceitação de um dos mais
altos dogmas de nossa Fé? Dizer-se simplesmente “Filho de Deus” não resolveria
o problema e até poderia conduzir o povo judeu, tradicionalmente crente em um
só Deus, a uma enorme perplexidade: aceitar a existência de um Deus-Homem! Foi,
aliás, o que mais tarde aconteceu: “Murmuravam então d’Ele os judeus, porque
dissera: ‘Eu sou o pão que desceu do céu’. Diziam: ‘Porventura não é este
aquele Jesus, filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos? Como, pois, diz
Ele: Desci do céu?’” (Jo 6, 41-42).
Daí ser muito
sapiencial o emprego da expressão “Filho do Homem”. Ela permitia ao ouvinte
situar-se a qualquer altura de seu grau de fé. Se se tratasse de um puro
naturalista, seu juízo sobre Jesus seria meramente humano, sem discernir sua
divindade, e essa expressão o deixaria tranquilo. Se, pelo contrário, se
tratasse de um grande místico, a natureza divina deixaria seus reflexos
refulgirem sobre a humanidade de Jesus e, nesse caso, a expressão em questão
seria tida como mais uma manifestação da humildade de Jesus. Essa é a constante
encontrada em não poucas páginas da Hagiografia: vemos os santos fazendo uso de
uma linguagem não inteiramente explícita ou categórica, a fim de evitar
perplexidades em seus ouvintes, muitas vezes até em seus próprios discípulos.
Por aí se entende
quanta delicadeza Jesus empregou nessa conversa com Nicodemos, ao fazer uso da
figura da serpente levantada por Moisés no deserto, aproximando-a
metaforicamente à do Filho do Homem, “a fim de que todo aquele que crê n’Ele
tenha a vida eterna”. Pronto já estava aquele bom fariseu a aceitar a afirmação
contida no versículo logo a seguir.
III – Deus
nos deu Seu filho Unigênito para nos salvar
Jesus é paulatino no
seu doutrinar. “Nemo summus fit repente”, diz um antigo provérbio latino: as
grandes obras não se fazem repentinamente. Estava diante d’Ele um homem
convicto de que só a Lei salva, e era preciso conduzi-lo a aceitar a verdadeira
via da salvação: a fé em Jesus. Mais uma vez, transparece a delicadeza do
Divino Mestre, preparando-o para o passo subsequente. Ele não fala de imediato
em salvação, mas sim em “vida eterna”, tal como o fará mais tarde ao revelar o
Sacramento da Eucaristia (6). E apesar disso, nessa outra ocasião, em face de
verdade tão ousada, “muitos de seus discípulos (...) disseram: Dura é esta
linguagem! Quem a pode ouvir?” (Jo 6, 60).
16 Pois Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho
unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna.
Belíssimo argumento para convencer um homem
lógico e reto como Nicodemos. Já lhe havia revelado, Jesus, a existência de uma
outra Pessoa em Deus, a do Espírito Santo (7). Agora, acentua o caráter
sobrenatural e divino da Segunda, presente na expressão usada anteriormente, “o
Filho do Homem”, referindo-se ao “filho Unigênito de Deus”.
Maldonado tece belas
considerações sobre este versículo, começando por ressaltar a força da
afirmação empregada por Jesus para referir-se ao grande amor de Deus pelos
homens. Ao usar o termo “mundo”, o Divino Mestre dilata os limites da aplicação
desse amor muito além das fronteiras do povo judeu, “com o qual pelo menos
tinha uma como que obrigação por razão da aliança” (8).
De fato, esse amor de
Deus por nós não poderia ser maior. Se Ele nos tivesse dado todos os Anjos
somados ao universo inteiro, nada seria em comparação com o que na realidade
nos entregou. O Pai bem sabia que, ao nos dar seu Filho Unigênito, oferecia-nos
o Céu e a própria participação em sua vida divina (9), pois Jesus é um Herdeiro
extremamente dadivoso. Maior manifestação de bondade é impossível! Atesta-o
maravilhosamente São Paulo no primeiro capítulo de sua Epístola aos Hebreus.
Esse insuperável
obséquio não é feito aos Anjos, mas à humanidade, aos filhos de pais
prevaricadores (Adão e Eva), e eles mesmos também manchados de incontáveis
culpas. Aos espíritos rebeldes, precipitou-os nas profundezas dos infernos
depois do primeiro e único pecado. Que fator levou o Pai a usar de tanta
misericórdia para conosco? Em lugar de merecidos castigos, deu-nos seu Filho
Unigênito, sacrificando-O — para nos salvar — na ignominiosa morte de cruz.
Ademais, o Pai não
no-Lo deu em parte, mas, muito pelo contrário, por inteiro e sem reserva. As graças
de Jesus, seus méritos, seu corpo, sangue, alma e divindade, todo Ele inteiro é
nosso. Ele é nosso Rei, nossa Cabeça, nosso modelo, nosso mestre, nossa causa.
Qual o objetivo de
Deus ao nos dar esse infinito dom?
Continua no próximo post
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