Comentários ao Evangelho - Lc 14, 1.7-14
22º domingo do
Tempo Comum – Ano C
1 "Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um
dos chefes dos fariseus. E eles O observavam. 7 Jesus notou como os convidados
escolhiam os primeiros lugares. Então contou-lhes uma parábola: 8 ‘Quando tu
fores convidado para uma festa de casamento, não ocupes o primeiro lugar. Pode
ser que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu, 9 e o dono da
casa, que convidou os dois, venha te dizer: ‘Dá o lugar a ele'. Então tu
ficarás envergonhado e irás ocupar o último lugar. 10 Mas quando tu fores
convidado, vai sentar-te no último lugar. Assim, quando chegar quem te
convidou, te dirá: ‘Amigo, vem mais para cima'. E isto vai ser uma honra para
ti diante de todos os convidados. 11 Porque quem se eleva, será humilhado e
quem se humilha, será elevado'. 12 E disse também a quem O tinha convidado:
‘Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus
irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também
convidar-te e isto já seria a tua recompensa. 13 Pelo contrário, quando deres
uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. 14 Então tu
serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na
ressurreição dos justos'" (Lc 14, 1.7-14).
Repetidas vezes
nos alerta o Divino Mestre contra o orgulho, de cujos efeitos todos padecemos,
infelizmente. Como combatê-lo com eficácia? No que consiste a verdadeira
humildade? Muitos, por equívoco, a confundem com mediocridade.
I - Choque entre dois modos de ser
Nesta terra de exílio,
um dos melhores modos de nos comunicarmos com Deus e termos, assim, algum
antegozo da visão beatífica é contemplar os símbolos do Criador postos no
universo, pois "as perfeições invisíveis de Deus, o Seu sempiterno poder e
divindade, tornam-se visíveis à inteligência, por suas obras" (Rm 1, 20).
Ou seja, desde que queiramos, é-nos dado discernir o Invisível no visível, o
Infinito no finito, o Criador nas criaturas.
"Eis o Cordeiro de
Deus"
Por isso, a Divina
Providência dispôs na natureza uma abundância de símbolos de grande expressão,
alguns dos quais foram aplicados ao próprio Filho de Deus, a fim de melhor O
conhecermos e mais O amarmos. Ele mesmo Se apresenta como a videira cujos ramos
produzem muito fruto (cf. Jo 15, 1-5), ou como o Bom Pastor, que dá a vida por
Suas ovelhas (cf. Jo 10, 11-16). Também é o Messias chamado de Leão da tribo de
Judá (Ap 5, 5), e como tal Se manifesta ao repreender com severidade os
fariseus (cf. Mt 23, 13-33), e ao "expulsar os que no templo vendiam e
compravam" (Mc 11, 15).
Entretanto, ao longo de
Sua vida e, sobretudo, na hora suprema de Sua Paixão e Morte, foi Jesus
predominantemente o Divino Cordeiro. Não sem razão, durante a Celebração
Eucarística, memorial do Sacrifício do Calvário, o sacerdote apresenta aos
fiéis a Hóstia consagrada, antes da Comunhão, dizendo: "Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo". Dentre os inúmeros símbolos de Nosso
Senhor Jesus Cristo, escolheu a Santa Igreja esse como sendo o mais
significativo para tão sagrado momento.
Humildade e mansidão
A liturgia, ora
comentada, põe em realce esse aspecto da Alma de Nosso Senhor, e a aclamação do
Evangelho nos convida a imitá-Lo: "Aprendei de Mim que sou manso e humilde
de coração" (cf. Mt 11, 29).
Na verdade, Ele é muito
mais do que isso, pois essas virtudes, que o homem luta por praticar, a Segunda
Pessoa da Santíssima Trindade as possui em essência: Jesus é a humildade e a
mansidão.
Quem é verdadeiramente
humilde, é também manso, tem flexibilidade de espírito, está disposto a servir
ou a obedecer a seu irmão, preocupa-se mais com os outros do que consigo mesmo,
aceita qualquer humilhação ou ofensa com alegria, e quando nota um defeito na
atitude de outro, reza por ele e procura não deixar transparecer o que
percebeu. Pratica, assim, uma elevada e nobre forma de caridade para com o
próximo.
Em sentido contrário, o
orgulhoso gosta de assumir posição de superioridade, tende a desprezar os
demais e deixa-se levar pela inveja, quando percebe uma qualidade nos outros.
Com seu temperamento difícil e implicante, acaba tornando-se uma pessoa de
convívio problemático, evitada por todos.
Tal era o caso dos
fariseus do Evangelho que comentamos. Presunçosos cumpridores de incontáveis
preceitos formais, utilizavam-se da Antiga Lei para se sobressair e ocupar os
primeiros lugares na sociedade. Entre eles e o resto do povo havia um
verdadeiro abismo, todo feito de discriminação e desdém.
II - "Quem se humilha, será elevado"
Num sábado anterior ao
episódio referido neste trecho do Evangelho, ou talvez nesse mesmo dia, Nosso
Senhor restituíra a saúde a uma mulher que "andava curvada e não podia
absolutamente erguer-se" (Lc 13, 11) havia dezoito anos. Essa cura
produzira entre os fariseus verdadeira celeuma, pois, na concepção deles, teria
Jesus desprezado a Lei, violando o repouso sabático.
Mas o Divino Mestre
deu-lhes uma resposta que os encheu de confusão: "Hipócritas! Não
desamarra cada um de vós no sábado o seu boi ou seu jumento da manjedoura, para
levá-los a beber?" (Lc 13, 15). O povo, ao contrário, se entusiasmava à
vista dos milagres por Ele realizados (cf. Lc 13, 17).
Crescia, em
consequência, em toda a Palestina, o prestígio de Jesus de Nazaré, e muitos O
consideravam um grande profeta, surgido afinal depois de quatrocentos anos de
silêncio do Céu.
Convite mal-intencionado
1 "Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de
um dos chefes dos fariseus. E eles O observavam".
Este Evangelho nos
apresenta Nosso Senhor indo almoçar na casa de um dos chefes dos fariseus,
certamente a pedido deste. Honroso na aparência, o convite fora feito, porém,
com o objetivo de poder analisá-Lo mais de perto para preparar-Lhe uma cilada. "Eles
O espreitavam insidiosamente, na esperança de encontrar algo de repreensível em
Sua palavra ou em Seu procedimento: convidam-No como quem quer prestar honras,
e O espionam como a um inimigo", nota o Cardeal Gomá.1
Bem diversa era a
atitude do Cordeiro de Deus: aceitou o convite, movido pelo desejo de
fazer-lhes bem. Conhecia desde toda a eternidade a cena que lá ia se desenrolar
e ansiava por chegar o momento em que pudesse indicar a essas almas, cegas pelo
orgulho, o verdadeiro caminho para o Reino dos Céus.2 Como assinala o padre
Duquesne, "Jesus teve a terna complacência de comparecer, com intenção de
aproveitar a oportunidade para edificar, instruir, convencer e, se possível,
conquistar para a verdade aqueles com os quais iria comer".3
Delírio farisaico pelos primeiros lugares
7 "Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros
lugares".
Naqueles banquetes
dispunham-se as mesas em forma de "u", para facilitar o serviço,
acomodando-se os comensais ao longo da parte externa. O principal lugar, bem ao
centro, estava reservado para a autoridade ou a pessoa a quem se desejava
homenagear. À sua direita sentava-se o anfitrião, à sua esquerda, o primeiro
dos convidados e assim iam se instalando os convivas, por ordem decrescente de
importância, até os extremos da mesa.
Naturalmente, nenhum
escriba ou fariseu queria ocupar esses últimos lugares; pelo contrário,
disputavam sem inibição e com avidez os postos de honra. Os problemas de
precedência eram tão vivos entre eles que Nosso Senhor chegara a recriminá-los
publicamente por esse defeito: "Ai de vós, fariseus, que gostais das
primeiras cadeiras nas sinagogas e das saudações nas praças públicas!" (Lc
11, 43).
Para ilustrar a
exacerbada ânsia de prestígio que os dominava, Fillion relata um curioso
episódio, extraído do próprio Talmud: "Certo dia, o rei asmoneu Alexandre
Janeu dava um banquete a vários sátrapas persas, e entre os convidados estava o
rabino Simeão ben Shetach. Logo que entrou no salão, foi ele sentar-se no lugar
de honra, entre o rei e a rainha. Ao ser repreendido por essa arrogante
intrusão, respondeu de pronto: ‘Não está escrito no livro de Sirac: Honra a
sabedoria e ela te honrará'? Chegava a este ponto o enfatuamento dos doutores
israelitas naquela época!".4
Ora, sendo os convidados
desse banquete membros da seita dos fariseus, chegando, começavam logo a
manobrar para ficar o mais próximo possível do anfitrião, a fim de satisfazer
seu incontido orgulho. Tomados pelo delírio de aparecer, disputavam entre si a
precedência, sem o mínimo recato, alegando cada qual em seu favor critérios
como idade, relevância da sua linhagem ou a própria sabedoria, como acima
vimos. Pouco se preocupavam em ouvir algum ensinamento ou admirar a quem quer
que fosse; o único critério que lhes interessava era serem objeto dos elogios e
da consideração dos presentes.
Assim ofuscados pelo
egoísmo, passara-lhes despercebida na sala do banquete a presença de Alguém
que, enquanto homem, era de estirpe real, descendente de Davi; e, enquanto
Deus, era o Criador do Céu, da Terra, do alimento que ia ser servido e até dos
próprios comensais. Cristo, entretanto, senta-Se despretensiosamente à mesa,
sem exigir em nenhum momento uma manifestação do respeito devido à Sua Pessoa.
Modo delicado de repreender
7b "Então contou-lhes uma parábola: 8a ‘Quando tu fores convidado
para uma festa de casamento ...'".
Talvez tenha de fato
ocorrido, nesse banquete, uma cena semelhante à descrita pouco adiante na
parábola, motivo pelo qual Jesus preferiu falar em tese, fazendo referência a
uma hipotética festa de casamento; dessa forma, evitava constrangimentos para
os demais convidados. Assim opina o Cardeal Gomá, o qual qualifica de
"delicada maneira de repreender os fariseus" o uso desse recurso
literário.5
Segundo Santo Ambrósio,
o Salvador os admoesta "com doçura, para que a força da persuasão
conseguisse suavizar a aspereza da correção, e objetivando também que a razão
ajudasse a persuasão, e a advertência corrigisse o orgulho".6 Analisando
sob outro prisma o fato, observa Fillion: "Jesus imagina de propósito a
cena numa festa de bodas porque em tais circunstâncias, nas classes abastadas,
observa-se mais rigorosamente a etiqueta".7 E o padre Tuya acrescenta:
"O banquete de casamento ao qual Jesus faz menção é o Reino Messiânico
[...]. Ali, os primeiros lugares estão reservados para os que foram mais
humildes".8
"Quem se eleva será humilhado"
8b "...não ocupes o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido
convidado alguém mais importante do que tu, 9 e o dono da casa, que convidou os
dois, venha te dizer: ‘Dá o lugar a ele'. Então tu ficarás envergonhado e irás
ocupar o último lugar".
Para realçar os
inconvenientes do orgulho, Nosso Senhor começa por mostrar aos fariseus o
quanto a ânsia de ocupar os primeiros postos era-lhes contraproducente, mesmo
do ponto de vista meramente natural. Porque, conforme ensina São Cirilo de
Alexandria, "o elevar-se prontamente a honras que não merecemos, denota
que somos temerários e torna nossas ações dignas de vitupério".9,
Melhor entenderemos esta
parábola se considerarmos que não vigoravam ainda no convívio social os
princípios de cortesia introduzidos pela benéfica influência do Cristianismo.
Naquela época, a ausência de bondade fazia-se sentir nas relações humanas,
regidas pelos princípios da Lei de Talião: "Olho por olho, dente por
dente". E o trato entre os homens era, portanto, marcado pelo egoísmo e a
dureza, buscando cada um apenas seus próprios interesses.
Se o convidado da
parábola tivesse, por precaução, escolhido o último lugar, teria sido honrado
pelo anfitrião. Entretanto, a procura imprudente da vanglória, acarretou-lhe
ser publicamente humilhado. Aliás, neste sentido, é interessante notar, com o
Cardeal Gomá, "o contraste entre aquele que baixa, coberto de confusão, e
o que sobe, cheio de honra; e entre as duras palavras ditas ao primeiro e as
suaves com as quais o segundo é convidado a ocupar um lugar melhor".10
Muito além das normas de cortesia terrena
10 "Mas quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar.
Assim, quando chegar quem te convidou, te dirá: ‘Amigo, vem mais para cima'. E
isto vai ser uma honra para ti diante de todos os convidados. 11 Porque quem se
eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado".
Bem observa Fillion que,
por certo, não quis Jesus dar com esta parábola simplesmente "uma regra de
cortesia mundana e de boas maneiras, baseada em motivos egoístas, ou seja,
substituir uma vaidade grosseira por um orgulho requintado".11
Para o Venerável Beda,
sob o invólucro da parábola revela-se uma clara admoestação: "Todo aquele
que, convidado, venha às bodas de Jesus Cristo e da Igreja, unido pela fé aos
membros da Igreja, não se exalte como se fosse superior aos outros, nem se
glorie por seus méritos; mas ceda seu lugar àquele que, convidado depois, é
mais digno e progrediu mais no fervor dos que seguem a Jesus Cristo, e ocupe
com modéstia o último lugar, reconhecendo que os demais são melhores do que ele
em tudo quanto se julgava superior".12
Envoltos, muitas vezes,
em linguagem figurada, os ensinamentos do Divino Mestre ultrapassam de longe as
meras normas de cortesia terrena, como põe em evidência esse santo monge
beneditino: "Porque nem todos os que se exaltam diante dos homens são humilhados,
e nem todos os que se humilham em sua presença são por eles exaltados; quem,
porém, se extasia por seus méritos, será humilhado pelo Senhor, e quem se
humilha por seus benefícios será exaltado por Ele".13
Quem se humilha, será
elevado. O melhor exemplo disso ali estava diante dos fariseus, tratando-os com
a suavidade de um cordeiro: Aquele que "sendo exteriormente reconhecido
como homem, humilhou-Se ainda mais, tornando-Se obediente até a morte, e morte
de Cruz. Por isso Deus O exaltou soberanamente e Lhe outorgou o nome que está
acima de todos os nomes" (Fl 2, 8-9).
Quem se exalta, será
humilhado. Entretanto, aqueles que, ensoberbecidos, disputavam os primeiros
lugares e procuravam estender armadilhas a Nosso Senhor, corriam o risco de
serem humilhados já nesta vida, ou, pior ainda, na eternidade, pelo justo Juízo
de Deus.
III - Procurar a recompensa no próprio Deus
12 "E disse também a quem O tinha convidado: ‘Quando tu deres um
almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus
parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e
isto já seria a tua recompensa'".
Depois de corrigir o
orgulho dos fariseus, Nosso Senhor volta-Se para o anfitrião a fim de lhe dar
um conselho. Havia este, sem dúvida, convidado apenas aqueles dos quais poderia
tirar depois algum proveito. Mesmo o convite a Nosso Senhor teria sido feito,
na opinião de Eutimio, com o desejo de apresentar-se como "diferente
daqueles fariseus que pareciam querer-Lhe mal".14 Além do mais, segundo
explica o padre Truyols, a presença de Jesus de Nazaré naquela casa prestigiava
o anfitrião diante do povo, dado o alto conceito de que gozava então o Divino
Mestre.15
Nosso Senhor,
entretanto, ensina o dono da casa a não proceder em relação aos outros movido
por cálculos pragmáticos e interesseiros. Porque qualquer ação que o homem
faça, visando satisfazer apenas seu próprio egoísmo, recebe a recompensa neste
mundo, ao obter o aplauso ou a aprovação dos demais, e perde qualquer mérito
para a vida eterna.16
Por isso, bem nos
aconselha São João Crisóstomo: "Não nos perturbemos, pois, quando não
recebermos recompensa pelos nossos benefícios, mas sim quando a recebermos;
porque se a recebermos aqui, nada receberemos depois; mas se os homens não nos
pagarem, Deus nos pagará".17
13 "Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os
aleijados, os coxos, os cegos. 14 Então tu serás feliz! Porque eles não te
podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos".
Ao incentivar esse chefe
dos fariseus a convidar "os pobres, os aleijados, os coxos e os
cegos", Nosso Senhor o recrimina com toda suavidade por seu egoísmo. Mais
do que isso, estabelece o princípio de que, para receber a recompensa no Reino
dos Céus, é preciso ser generoso com o próximo nesta terra, sem esperar dele a
restituição do benefício feito.18
Praticar o bem visando
retribuição, transforma o relacionamento humano em mero negócio regido pelos
princípios dos antigos contratos romanos pagãos: "do ut des" (dou
para que me dês), ou "do ut facias" (dou para que faças). Com efeito,
pergunta o padre Duquesne: "O que é a liberalidade exercida pelos
mundanos? Uma liberalidade interesseira: dá-se apenas para receber, dá-se só a
quem sabe pagar na mesma moeda. Uma liberalidade costumeira que com frequência
leva a murmurar quem a ela se vê obrigado, na qual não entra motivo algum de
caridade ou de religião; enfim, uma liberalidade de prazer e
ostentação".19
Pelo contrário, quando
fizermos o bem a outro, sem esperar pagamento, o prêmio nos será dado pelo
próprio Deus. E Ele nunca Se deixa vencer em generosidade.
Duríssima resultava esta
doutrina para aqueles homens materialistas, orgulhosos e oportunistas. Mas
tinham diante de si, como exemplo vivo, Aquele que a praticaria até os últimos
extremos, ao aceitar como cordeiro os sofrimentos da Paixão e deixar-Se
crucificar, sem um lamento, por aquele povo a quem tanto bem fizera e em favor
do qual tantos milagres realizara.
IV - Humildade e admiração
Ao criar os homens com o
instinto de sociabilidade, desejava Deus que eles se apoiassem mutuamente na
prática do bem, tornando o convívio social uma contínua fonte de afervoramento
espiritual. Assim, numa sociedade toda voltada para a prática da virtude, os
inferiores admirariam e venerariam os seus superiores e estes lhes retribuiriam
com afeto e ternura. Reinaria entre todos a união, a harmonia e a paz.
Ora, o pecado original
introduziu no homem uma virulenta tendência à soberba, a qual está na raiz de
todos os pecados. Quando essa inclinação não é combatida, o relacionamento
entre os homens decai ao nível de uma feira de vaidades e de egoísmos,
verdadeira cascata de desprezos, como a que vemos retratada no banquete
descrito no Evangelho.
Sutil forma de orgulho
Para bem entendermos em
que consiste a prática da virtude da humildade, aqui recomendada por Nosso
Senhor, são necessários alguns esclarecimentos, pois não é raro encontrar
pessoas que, em nome de uma despretensão mal entendida, tornam-se medíocres,
não fazendo render os talentos recebidos de Deus.
A humildade consiste em
"andar em verdade", 20 escreveu Santa Teresa de Jesus. Ora,
"andamos em verdade" quando nos submetemos a Deus com espírito de
religião, somos-Lhe gratos, reconhecendo a nossa total dependência do Criador e
compreendendo que tudo quanto temos de bom foi-nos dado por Ele. Pois se de um
lado, infelizmente, há em nós defeitos culposos ou meras limitações da
natureza, de outro lado, por certo a Divina Providência a ninguém deixou
desprovido de qualidades e dons, ora maiores, ora menores. A propósito,
ensina-nos São Tomás não haver oposição entre a humildade e a magnanimidade:
"A humildade reprime o apetite, para que ele não busque grandezas além da
reta razão, ao passo que a magnanimidade o estimula para o que é grande,
segundo a reta razão. Fica claro, portanto, que a magnanimidade não se opõe à
humildade, mas, ao contrário, ambas coincidem em que agem segundo a reta
razão".21 São virtudes complementares.
Não caiamos, portanto,
numa sutil forma de orgulho que se traduz em apresentar-se como o último dos
homens, um ser incapaz de realizar qualquer ação de valor... São Tomás afirma
que isso constitui falsa humildade, cognominada por Santo Agostinho de
"grande soberba", porque, na verdade, com esse tipo de fingimento, a
pessoa pretende obter uma glória superior. 22 Além disso, é também ingratidão
em relação aos dons recebidos de Deus. Pelo contrário, aceitemos com mansidão e
ânimo aquilo que realmente somos, analisemo-nos com toda objetividade e não nos
revoltemos perante eventuais adversidades ou mesmo injustiças, mas saibamos
utilizá-las como meio de reparar nossas próprias faltas.
Um dos melhores meios de praticar a humildade
Entretanto, um modo
muito eficaz e pouco ensinado de combater o amor-próprio consiste em admirar
aquilo por onde os outros são superiores a nós, reconhecendo nessas qualidades
reflexos das perfeições divinas. Sendo todo homem superior aos demais sob
determinado ângulo, único e personalíssimo, procurar admirar essas qualidades
dos outros é um dos melhores e mais eficientes meios de combater o amor
desregrado a si mesmo e à vanglória.
Quem assim agir,
praticará de maneira excelente a virtude da humildade e, ao mesmo tempo, o
Primeiro Mandamento da Lei de Deus, pois o amor a todas as superioridades está
no cerne da prática da virtude da caridade. Por isso, quem quiser ser manso de
coração, admire as qualidades dos outros; quem quiser ser desapegado, admire a
generosidade dos outros; quem quiser ser santo, admire a virtude dos outros.
Enfim, admiremos tudo quanto é admirável e teremos já a recompensa da paz de
alma nesta terra, e a bem-aventurança eterna no Céu! A admiração, eis a grande
lição deste Evangelho.
1 GOMÁ Y
TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.III,
p.272.
2 Por não
estar incluídos nesta liturgia, não comentaremos aqui os versículos 2 a 6, que
narram a cura do hidrópico. Mas convêm notar como Jesus, mesmo enquanto dá essa
magnífica prova de seu poder divino, mantém a suavidade do Cordeiro no seu
trato com aqueles fariseus. Em lugar de increpá-los, como fez em anteriores
ocasiões, fala-lhes nessa ocasião com linguagem interrogativa, quase como quem
pede conselho.
3 DUQUESNE.
L'Évangile médité. Lyon-Paris: Perisse Frères, 1849, v.III, p.92.
4 FILLION,
Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp,
s/d., v.II, p.394.
5 GOMÁ Y
TOMÁS, op. Cit., p.273.
6 SAN
AMBROSIO, Exposit. in Lucas
7, 195,
apud ODEN, Thomas C. e JUST Jr., Arthur A. La Biblia comentada por los Padres
de la Iglesia - Nuevo Testamento, San Lucas. Madrid:
Ciudad Nueva, 2000, v.III, p.325.
7 FILLION, op. cit., p.395.
8 TUYA, OP,
Manuel de. Biblia comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.II, p.864.
9 SAN
CIRILO DE ALEJANDRÍA, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
10 GOMÁ Y
TOMÁS, op. Cit., p.274.
11 FILLION,
op. cit., p.395.
12 SAN
BEDA, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., p.350.
13 Idem,
p.351.
14 EUTIMIO,
apud MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios. Evangelios de
San Marcos y de San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.637.
15 Cf.
FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. 2.ed. Madrid:
BAC, 1954, p.447-448.
16 Sobre
este assunto, ver comentários do mesmo autor em Arautos do Evangelho, n.98,
fev. 2010, p.11-18.
17 SAN JUAN
CRISÓSTOMO, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., p.352.
18 Note-se,
entretanto, que "não se proíbe, nessa parábola, cumprir os deveres de
família ou de amizade" (GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.274). Por outro lado,
"cairia em singular erro quem procurasse interpretar ao pé da letra todas
as circunstâncias. Não passou pela mente de Jesus alterar as relações sociais
no
que estas
têm de legítimo" (FILLION, op. cit., p.395).
19
DUQUESNE, op. cit., p.96.
20 SANTA
TERESA DE JESÚS. Moradas sextas, c.10, 7. In: Obras Completas. 3.ed. Burgos: El
Monte Carmelo, 1939, p.617-618.
21 SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.161, a.1, ad.3.
22 Cf.
Idem, II-II, q.161, a.1, ad.2.
Nenhum comentário:
Postar um comentário