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sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Evangelho Transfiguração do Senhor - Ano C - 6 de Agosto

Comentários ao Evangelho da Festa da Transfiguração do Senhor - Ano C - 6 de Agosto

Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. 31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém. 32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele.
33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”.
Pedro não sabia o que estava dizendo. 34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem. 35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.
Como será a glória do Céu?
Fomos criados para a bem-aventurança, mas como será ela? Na Transfiguração, o Divino Mestre levanta o véu da eternidade que nos espera se Lhe formos fiéis até o fim.
I - A glória do Senhor manifestou-se
         Se percorrermos as páginas dos Santos Evangelhos, veremos que não consta outra Transfiguração de Jesus além daquela do Tabor. Uma vez ressuscitado, é verdade, apareceu aos Apóstolos no Cenáculo (cf. Mc 16, 14-18; Lc 24, 36-49; Jo 20, 19-29), a Santa Maria Madalena (cf. Mc 16, 9; Jo 20, 1-18) e às Santas Mulheres (cf. Mt 8, 9-10), mas nada indica ter manifestado então a refulgência descrita nessa grandiosa cena que agora contemplamos. Ali, Ele revelou um diminuto fulgor de sua glória, apesar de ocultar a plenitude do resplendor que Lhe é próprio. Que interpretação dar a este fato tão sublime? Que relação poderá ter conosco, dois mil anos depois? Embora tenhamos comentado a Transfiguração — segundo o Evangelho correspondente aos Anos A e B —, esta passagem presta-se a múltiplos aprofundamentos, com úteis implicações para nossa vida espiritual.
À primeira vista, parece não ter ela um vínculo notável com a vocação do cristão, a qual é recordada tão oportunamente pelo Concílio Vaticano II: “ainda que, na Igreja, nem todos sigam pelo mesmo caminho, todos são, contudo, chamados à santidade e a todos coube a mesma fé pela justiça de Deus (cf. II Pd 1, 1)”.1 A perfeição não é exclusividade dos clérigos nem dos religiosos, devendo brilhar também nos leigos, de maneira que o espírito católico impregne a realidade temporal. E para ser santo não é necessário fazer milagres, nem possuir dons extraordinários ou transfigurar-se, como o fez Jesus. Já no Antigo Testamento, Deus conclamava Israel à santidade: “O Senhor disse a Moisés: ‘Dirás a toda a assembleia de Israel o seguinte: sede santos, porque Eu, o Senhor, vosso Deus, sou Santo’” (Lv 19, 1-2). Por conseguinte, não é fácil estabelecer uma relação próxima entre a vocação genérica dos filhos de Deus à santidade e a Transfiguração de Nosso Senhor, que é um fenômeno miraculoso. Analisemos melhor a questão.
Três testemunhas escolhidas
Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar.

         Em que momento se deu a Transfiguração? Seis dias depois, segundo São Marcos, e uns oito, segundo São Lucas, do ato tão marcante em que São Pedro declara que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo (cf. Mt 16, 13-17; Mc 8, 27-30; Lc 9, 18-21), e o Divino Mestre lhe responde: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). Logo a seguir, entretanto, Jesus anunciou os sofrimentos que O aguardavam em Jerusalém, ainda que o significado de suas palavras não tivesse sido compreendido por seus seguidores.
    Os Apóstolos seguiam Nosso Senhor havia já bastante tempo, mas, infelizmente, tinham formado uma dupla visão a seu respeito. Uma era a humana, porque, tendo assumido nossa natureza, sofria as contingências às quais está sujeita. Ele tinha fome e sede; Se cansava, como se pode ver, por exemplo, no diálogo com a samaritana junto ao poço de Jacó (cf. Jo 4, 1-26), quando Ele lhe pede água, pois os Apóstolos tinham ido providenciar comida; ou então quando dorme na barca (cf. Mt 8, 23-24; Mc 4, 37-38; Lc 8, 22-23). Ao lado dessas aparências comuns havia fatos que denotavam algo de superior n’Ele, como o passar uma noite inteira em oração sem, por tal razão, diminuir sua atividade no dia seguinte (cf. Lc 6, 12-13); curar doentes e expulsar demônios com toda facilidade, por meio de uma simples ordem, ou mesmo ensinar uma doutrina nova e alheia a qualquer escola então existente, sem ter estudos. Ambos os aspectos davam uma ideia de Nosso Senhor difícil de abarcar num só golpe de vista... Havia facetas humanas e divinas que iam se alternando n’Ele, e todos, Apóstolos e discípulos, viam que ali estava o Salvador. Não obstante, devido à errada concepção messiânica que tinham, vê-Lo crucificado seria um desmentido tremendo de tudo quanto esperavam, um verdadeiro abalo em suas convicções, o que lhes faria perder psicologicamente o rumo. Seus mais ardentes anseios se confrontariam com o doloroso desenlace da Paixão, e ante a Morte de Cristo surgiria a pergunta crucial: Ele era ou não o Messias prometido?
Zeloso pastor de seu pequeno rebanho, empenhava-Se Jesus em prepará-los para esses  acontecimentos  quase iminentes. Sabia Ele o quanto precisavam de um reforço, de um estímulo, para se manterem firmes na fé. Todavia, não convinha ser dado a todos por igual, como afirma São Tomás de Villanueva, ao explicar o motivo de apenas três Apóstolos terem assistido à prodigiosa cena da Transfiguração: “A fim de que o testemunho do que foi visto fosse melhor e mais concludente para os outros, foi necessário ser presenciado por poucos, para que a evidência do fato e a grande quantidade  de  testemunhas não fizessem perder o mérito da fé”.2 Os três deveriam, depois, sustentar os outros no momento da provação, diminuindo a sensação de insegurança que tinham diante da aparente derrota do Messias. Assim, todos continuariam crendo na divindade de Jesus, apoiados nas palavras dos que haviam presenciado a Transfiguração.
         Aqueles eleitos haveriam de presenciar muitas das humilhações de Nosso Senhor Jesus Cristo, durante sua Paixão e agonia no Horto das Oliveiras. Segundo o modo de agir habitual da Providência, Ela pede mais sacrifícios a quem é mais favorecido pela graça, a quem é mais amado. E se alguém tem o privilégio de contemplar maravilhas sobrenaturais, será escolhido muito possivelmente, para ser provado e demonstrar no amor à cruz a autenticidade de seu amor a Deus. Quando a alma é submetida a tribulações e o fardo parece excessivamente pesado, deve lembrar-se que a cruz é o sinal dos predestinados e, se o momento é de prova, há de chegar a hora da consolação. Deus tudo faz com equilíbrio e ampara as almas na medida de suas necessidades.
         Grande deve ter sido a impressão no espírito dessas três testemunhas, a ponto de estar narrado o fato nos três Evangelhos Sinópticos, além de São Pedro haver registrado em sua segunda epístola a referência à voz do Pai: “Esta mesma voz que vinha do Céu nós a ouvimos, quando estávamos com Ele no monte santo” (II Pd 1, 18). São João também consignou em seu Evangelho a visão esplendorosa da glória do Filho de Deus, referindo-se a este episódio, provavelmente, com estas palavras: “e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14).
A glória manifestou-se na luz refulgente
29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
         Cristo quis desvelar sua glória “enquanto rezava”. Lição para nós, que tantas vezes damos à oração pouca importância, para dar a primazia às ocup concretas do dia a dia. A o ção torna a nossa alma ce lestial e, por isso, é mister nunca deixar de rezar.
         Como entender a fulgurância de Jesus manifestada nesta ocasião? Ele  quis  mostrar  uma centelha do que assistiremos no Céu. Com efeito, era impossível a Pedro João e Tiago contemplar a divindade de Nosso Senhor com o sentido da visão, por ser uma realidade fora do alcance da natureza humana, nesta Terra. Só nos será dado vê-la no Céu, com o olhar da alma. Mas, no momento da Transfiguração, eles alcançaram aquilo que o olho humano capta, isto é, a refulgência exterior do Corpo sagrado do Senhor. A glória do Corpo era apenas um reflexo da glória da Alma, muitíssimo mais esplendorosa.
O auge da Antiga Lei curva-se ante o Evangelho
30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. 31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém.
           Moisés era o ponto máximo da história verdadeiramente grandiosa do povo hebreu, marcada por figuras ímpares como Abraão, Isaac, Jacó, José e tantos outros. A vida desse homem providencial é pontilhada de acontecimentos estupendos. Talvez no Antigo Testamento não tenha havido alguém semelhante a ele, não só pelo porte de sua vocação, como também por sua intimidade com Deus, a ponto de afirmar o Autor Sagrado: “O Senhor se entretinha com Moisés face a face, como um homem fala com o seu amigo” (Ex 33, 11). Por sua vez, Elias, com uma existência também caracterizada pela ação divina e pela grandeza, era considerado o auge do profetismo, sendo objeto de especial veneração pelos israelitas piedosos, pois sua missão não estava encerrada. Apesar de ter sido arrebatado num carro de fogo de forma misteriosa, o profeta Malaquias profetizava seu regresso para desempenhar ainda uma missão especial junto ao povo eleito (cf. Ml 3, 23-24). Esse conjunto de circunstâncias fazia com que sua memória fosse muito viva entre todos, quase como se Elias, até então, estivesse entre eles.
         O fato de ambos aparecerem no Monte Tabor, decerto numa atitude de submissão a Jesus, cujos pormenores não nos conta a singela narração evangélica, confirmava de maneira ainda mais clara às três testemunhas aquilo que a própria Transfiguração dizia por si: Jesus Cristo era realmente o Messias prometido, o Filho de Deus.
Uma enorme graça pouco compreendida
32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele. 33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer rês tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo.
A reação de Pedro atesta como lhe ra difícil não expressar palavras tudo quanto ntecia em torno dele. O que ele dissera tinha razão de ser, pois refletia o desejo de perpetuar aquela situação de felicidade paradisíaca.
         Eles estavam extasiados por maravilhas nunca vistas, mas ao mesmo tempo tinham medo (cf. Mc 9, 5-6), pois conservavam certo apego a muitos princípios que não correspondiam ao que se desenrolava diante de si. Todo o desejo de um Messias temporal, que haveria de resolver os problemas de Israel, ficava reduzido a uma bagatela diante de cena tão magnífica. Ao verem Jesus resplandecente, não devem ter entendido bem o alcance da Transfiguração, porque ainda não estavam preparados para assimilar tudo quanto Ele queria ensinar-lhes. A noção verdadeira do Salvador ainda não se tinha constituído no espírito deles e aquele episódio entrava em choque com os conceitos distorcidos que predominavam na sua mente. Essa contradição não impedia que eles tivessem a experiência do que é um corpo depois de se unir outra vez à sua própria alma. “A fé” — nos diz São Paulo — “é a certeza daquilo que ainda se espera, a demonstração de realidades que não se veem” (Hb 11, 1). E naquele instante eles viam com antecipação uma realidade anunciada pela fé, ou seja, o esplendor do que será um corpo glorioso. Tudo isso era acompanhado de graças, porque se Nosso Senhor Se transfigurasse sem lhes proporcionar um auxílio sobrenatural especialmente sensível, de que adiantaria? A mera razão não seria capaz de sustentá-los, sendo necessárias essas graças com que Deus nos educa e conduz à santidade.
Filhos adotivos, Deus nos ama como ao seu Filho único
34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem. 35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz!”
Para fixar ainda mais na sensibilidade dos Apóstolos o quanto era importante aquela visão, deu-se o fenômeno narrado nestes versículos. Detenhamos nossa atenção na palavra “Filho”.
Nosso Senhor Jesus Cristo é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Deus Filho, o único Filho gerado pelo Pai. Mas nós estamos incluídos nesta filiação, pois somos filhos adotivos de Deus pelo Batismo e, portanto, somos irmãos de Jesus, fazemos parte da família divina. A glória ali revelada era uma antecipação da mesma glória que teremos na eternidade, se correspondermos a essa altíssima condição. Para isso, devemos escutar “o que Ele diz”, porque “um só é o vosso mestre, o Cristo” (Mt 23, 10).
         Em “o Escolhido” o Pai colocou tudo o que podia, ou seja, o infinito de Bondade, de Verdade e de Beleza. A nós também, que somos seus escolhidos, Ele concede dons incalculáveis no Batismo e em todos os outros Sacramentos. Ele infunde o bem existente em nós, por seu amor. Ser amado de Deus é um privilégio extraordinário que devemos cuidar ciosamente, afastando-nos do pecado e, se tivermos a infelicidade de perder o estado de graça, devemos procurar recuperar logo a amizade de Deus, trilhando as vias do arrependimento, para nos aproximarmos do tribunal misericordioso da Penitência.
As consolações não duram sempre
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-Se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.
Toda alegria neste mundo tem seu término. Concluída aquela grande experiência mística, era preciso que os três Apóstolos descessem do monte para se dedicar à evangelização, sempre cheia de obstáculos e vicissitudes. Quando cessa a graça sensível resta-nos a graça cooperante que nunca falta, mas exige nossa colaboração, tantas vezes deficiente. E começam os problemas, pois, na vida cotidiana não temos a mesma clareza para entender as coisas sobrenaturais como nos momentos de atuação da graça operante sobre nós.3 Como sublinham os evangelistas, os Apóstolos tinham dificuldade de compreender o panorama da Morte e Ressurreição descortinado por Nosso Senhor diante deles no Tabor (cf.  Mt  17,  2122; Lc 9, 44-45; Mc 9, 31-32); tendiam a interpretar aquilo que tinham presenciado com critérios humanos —no relato de outro Evangelista eles se perguntavam entre si o que significaria “ser ressuscitado dentre os mortos” (Mc 9, 10), como tivemos oportunidade de comentar no texto do Ano B — e, pouco depois, pensavam em quem seria o maior (cf. Lc  9,  46): já haviam se esquecido das consolações da Transfiguração. E quando se depararam com a pavorosa tribulação da Paixão de Cristo, vacilaram, fugiram.
      Deste  fato  podemos  também extrair uma lição para a nossa vida espiritual. Para não perder de vista os horizontes sobrenaturais e não vir a cair em tentação, temos de viver em função da visualização que as graças místicas nos oferecem. Elas são muito mais frequentes do que se pensa na vida espiritual dos fiéis, e um valioso auxílio para perseverar nas ocasiões de prova.
II - Um reflexo do Absoluto
A Transfiguração nos dá ideia do reflexo de Absoluto preparado para quem for para o Céu. Detenhamos a atenção neste destino último, a nossa ressurreição em estado de glória, se pela misericórdia de Deus nos salvarmos.
Para melhor se entender no que ela consiste, consideremos primeiro a situação do Homem-Deus. Embora Ele Se apresentasse com um corpo padecente, este deveria ser glorioso,4 a vários títulos: em virtude da união hipostática, isto é, da união da natureza divina com a humana na Pessoa do Verbo; por sua Alma estar na visão beatífica a partir da concepção; e, por fim, pelos méritos conquistados por sua Morte na Cruz.
         Nós, obviamente, não temos uma união hipostática com uma Pessoa Divina, mas, guardadas as devidas proporções, somos chamados a ver a Deus face a face no Céu, além de sermos beneficiados pelos méritos de nosso Divino Redentor, transferidos para nós por sua infinita clemência. Temos, então, como Jesus, os títulos que nos garantem a aquisição do corpo glorioso após a ressurreição dos mortos. Por isso, a Transfiguração nos dá uma noção de como seremos na eternidade, estimulando em nós a esperança, pois, como afirma o Apóstolo, seremos na vida futura semelhantes a Cristo e com Ele triunfaremos, “contanto que soframos com Ele, para que também com Ele sejamos glorificados” (Rm 8, 17).
         Assim, pelo testemunho dos três Apóstolos acerca deste milagre nos foi indicado como será a felicidade do Céu, o que levou São Pedro a querer fazer três tendas no Tabor para nunca mais sair dali. Ele sentia uma alegria interior que lhe dava o desejo de não descer do monte, de esquecer as lutas e trabalhos ainda à sua espera embaixo, tal como nos acontece quando somos pervadidos de uma grande consolação sobrenatural... gostaríamos que jamais terminasse!
A herança celeste
Ora, como bem sabemos, o Céu é a herança dos filhos de Deus. A fim de compreender mais a fundo esta verdade, façamos um contraste. Se consideramos como é o inferno, constatamos nele a total ausência de amor: lá ninguém ama o próximo, vive-se num delírio de ódio de uns contra os outros, seja em relação aos Bem-aventurados do Céu, seja em relação a quem participa da mesma desgraça. É o ódio perpétuo, a tudo e a todos. Pelo contrário, no Céu vive-se eternamente no amor. E se o amor causa felicidade, será essa a essência do Céu, resultante da visão beatífica, porque é uma necessidade da inteligência aderir à verdade e da vontade amar o bem ao seu alcance. Tal aspiração das potências da alma será saciada em sua plenitude na posse da visão do próprio Deus.
         Uma figura pode ajudar-nos a alcançar melhor esta realidade: ao ser-nos apresentada uma fruta extraordinariamente bela e saborosa, como a manga quando está no ponto exato de maturação, exalando seu atraente perfume, nossa inteligência percebe sua autenticidade, fazendo com que a vontade de comê-la cresça. Se, ao prová-la, o sabor corresponder ao esperado, a vontade e a inteligência estarão atendidas e nos sentiremos satisfeitos.
         Poder-se-ia contestar tal demonstração com a existência do mal, pois pareceria que o homem o ama, por exemplo, quando peca. Com efeito, ao praticar o mal o homem se ilude, julgando enganosamente encontrar o bem no pecado, pois, ele não é capaz de amar o mal pelo mal e de abraçar o erro pelo erro.5 São as aparências falsas sugeridas pelos sentidos que obnubilam a inteligência e enfraquecem a vontade.6 No roubo — para falar de alguns pecados —, o ladrão quer obter para si um bem, a propriedade alheia, sem o incômodo e o esforço de trabalhar com honestidade. Ele sabe que é uma violação da Lei de Deus, um prejuízo grave para o lesado e para a ordem, mas opta com egoísmo por sua própria vantagem. Para vencer a resistência de sua consciência, forjará sofismas para justificar o ato ilícito e dar-lhe certos ares de bem, sem os quais não conseguiria cometê-lo. Pela mesma razão, a heresia procura revestir-se das roupagens da verdade para ter livre curso: se ostentasse o erro sem véus, ninguém a aceitaria.
         No Céu, onde não há fraude, encontra-se o Bem e a Verdade em essência e, por isso, é impossível ao homem deixar de amar. Desta forma, a partir do momento em que a alma vê a Deus, na visão beatífica, a inteligência e a vontade aderem de imediato a Ele, de maneira absoluta e irrevogável.
 Como será a felicidade no Céu
         Todos nós fomos criados para Deus, e é por Ele que nossa alma anseia. Pelo fato de O possuirmos no Céu vem essa plenitude de gozo. Por que plenitude? Porque a intensidade e a duração da alegria dependem da qualidade do objeto possuído. Se é pequena, com o tempo se gasta e nos cansamos dele, como costuma acontecer, mais cedo ou mais tarde, em relação aos bens materiais e a tudo quanto é deste mundo. O prazer humano é caduco. Quem poderá ouvir sem interrupção a mesma música, por mais bela que seja, ou contemplar durante anos, sem mover-se, uma única paisagem? Nesta vida não há o que não termine por enfastiar. Mas Deus não, porque no Céu Ele será visto em seu todo, mas não totalmente. E como é a Suprema Verdade e Beleza, sempre apresentará a nossos olhos aspectos novos pela eternidade inteira, sem nunca nos entediar.
         “Então” — comenta São Roberto Belarmino — “a sabedoria não consistirá mais numa investigação da divindade no espelho das coisas criadas, mas na própria visão descoberta da essência de Deus, causa de todas as causas, e da primeira e Suma Verdade”.7 O desejo natural de conhecer e de saber se sacia com esta visão, pois nosso entendimento será elevado pela luz de Deus — o lumen gloriæ —, para ser capaz de compreendê-Lo da forma mais perfeita possível à nossa condição. E se nesta vida a noção de certas verdades nos traz alegria, qual será a felicidade originada pela dilatação da inteligência humana por um empréstimo da inteligência divina?
         Contudo, o gozo celestial não seria completo se fosse restrito tão só a atender os anelos da inteligência. Também a vontade alcança nele a plenitude de sua satisfação. O coração tem necessidade de amar e de ser amado, e nada produz tanta felicidade quanto realizar esse ideal, ainda que seja de modo passageiro. Quando alguém a quem prezamos muito, sobretudo se é superior a nós em algum ponto, nos diz “Eu te estimo muito!”, nosso coração se alarga por nos sentirmos amados. Como será imenso nosso júbilo quando Deus nos disser: “Meu filho, Eu te quero muito! Tanto que te criei, e foi meu amor que infundiu em tua alma todo o bem existente nela. Vem, meu filho! Aqui estou Eu para ser o teu gozo eternamente!”. Diz Santo Afonso que as almas “no Céu têm certeza de que amam e são amadas por Deus. Veem que o Senhor as abraça com um grande amor, que nunca mais cessará, por toda a eternidade”.8 Esta é a felicidade no Céu!
         Felicidade que sacia sem saciar, porque não produz fastio. Assim como a Verdade, também a Bondade de Deus é infinita, proporcionando ao homem sempre conhecer algo novo e digno de ser amado. Os Santos criaram uma imagem muito expressiva ao comparar o deleite eterno a uma sede que, satisfazendo-se, nunca se sacia: sede de sede. “Os bens celestes saciam e sempre alegram o coração [...]. E, apesar de saciar plenamente, parecem sempre novos, como se fosse a primeira vez a degustá-los; sempre os fruímos e sempre os desejamos; sempre os desejamos e sempre os alcançamos”.9
III - Jesus transfigurou-Se para cada um de nós
         Todas estas considerações sobre a glória do Céu nos fazem compreender melhor o significado do Tabor. Quando Jesus Se transfigura diante dos Apóstolos, também o faz diante de cada um de nós, porque a Liturgia permite beneficiarmo-nos hoje da efusão de graças que houve há dois mil anos naquele acontecimento. Participamos do mesmo encanto de São Pedro, de São João e de São Tiago. E à distância entendemos — talvez melhor ainda que os Apóstolos ali — a mensagem que o Divino Mestre quer transmitir para nosso bem.
         Todo cristão, quando segue com fidelidade os passos de Jesus, tem em sua vida espiritual momentos de Tabor, nos quais vê com particular clareza o esplendor de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a hora da Transfiguração. Poderá ser numa celebração litúrgica, ao receber a Eucaristia, durante uma Confissão, quando faz uma oração notadamente fervorosa ou, até mesmo, numa circunstância inesperada de seu dia a dia. Quem escolhe a ocasião para favorecer a alma com graças místicas é o Espírito Santo. A recordação dessas inefáveis consolações deve ser guardada na memória com cuidado, como quem cola num álbum as fotos dos melhores episódios da vida, para reviver, mais tarde, a felicidade daqueles instantes únicos.
Também, em sentido contrário, o bom cristão tem ao longo da caminhada terrena suas Sextas-Feiras de Paixão. É, então, quando mais se assemelha ao Salvador. Serão simples dificuldades, poderá ser uma penosa doença, problemas familiares, reveses financeiros, dramas, desilusões, decepções ou tragédias que nunca faltam... Parece, então, que fomos abandonados por Deus, que Ele não ouve a nossa prece, o nosso clamor de angústia, e somos tentados contra a fé, vacilamos, duvidamos. Jesus dá a impressão de estar distante. Mas, não! Ele está mais próximo de nós, por mais que não sintamos sua presença ao nosso lado. Devemos, portanto, fazer um pequeno esforço, que não cansa nem dá trabalho, de rememorar nossos momentos de transfiguração, nos quais percebemos seu auxílio com mais intensidade, seu amor de Pai e sua solicitude de Pastor em relação a nós. Essa simples lembrança nos fortalecerá na fé, poderá reavivar as consolações com as quais fomos favorecidos no passado e nos ajudará a atravessar os períodos de aridez ou as provações e tribulações da existência. A esperança do prêmio eterno é um valioso alento para suportar, com resignação cristã, a cruz de todos os dias, da mesma forma que os três Apóstolos tiveram mais ânimo durante a Paixão por terem testemunhado a Transfiguração, e São João pôde estar ao pé da Cruz, no Calvário, ao lado de Maria Santíssima e das Santas Mulheres. Saibamos dar valor a esses lampejos de Tabor, pois são a chave de nossa vida espiritual, o fundamento de nossa perseverança. 
1) CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.32.
2) SÃO TOMÁS DE VILLANUEVA. Concio 94. Dominica secunda Quadragesimæ, n.1. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 2011, v.II, p.735.
3) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.111, a.2.164
4) Idem, III, q.14, a.1.
5) Cf. Idem, I-II, q.77, a.2.
6) Cf. Idem, q.75, a.2, ad 1; q.77, a.1.
7) SÃO ROBERTO BELARMINO. Elevação da mente a Deus pelos degraus das coisas criadas. São Paulo: Paulinas, 1955, p.247.
8) SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Sermones abreviados para todas las dominicas del año. P.II, S.II, serm. 54. In: Obras Ascéticas. Madrid: BAC, 1954, t.II, p.918-919.
9) Idem, p.919.


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