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domingo, 30 de outubro de 2011

O Juízo

“Por justo juízo de Deus, fui condenado!”
O juízo é um assunto tão rico que mesmo uma vasta biblioteca não conseguiria abarcar todas as obras necessárias para abordá-lo de maneira exaustiva. Contudo, para efeitos do presente artigo, vale a pena ilustrá-lo considerando um fato preservado pela tradição da Ordem dos Cartuxos.
Conta a história que seu fundador, São Bruno, resolveu abandonar o mundo e tornar-se monge ao testemunhar espantoso acontecimento passado com um então célebre personagem da Paris do século XI, Raymond Diocrés, doutor em Teologia, professor e considerado pessoa muito virtuosa.
Faleceu ele no ano de 1082. Uma multidão, com destaque para seus alunos, acorrera para velar seu corpo, colocado, conforme o costume da época, num majestoso leito e coberto com um suave véu.
Sob o olhar atento dos presentes, deu-se início ao Ofício de defuntos. Ora, a certa altura, na leitura de uma das lições, é proclamada a pergunta:
“Responde-me: Quão grandes e numerosas são tuas iniqüidades?”
Qual não foi o espanto de todos, ao ouvirem uma voz sepulcral, mas clara, saída de baixo do véu mortuário dizendo:
— Por justo juízo de Deus, fui ACUSADO!
Interrompem o Ofício e levantam o véu, e ali estava o morto gelado e enrijecido, sem o menor sinal de vida.
Recomeçam o Ofício e novamente, ao chegar-se à pergunta acima mencionada, “responde-me”, espanto muito maior: o corpo, antes rígido, desta vez se levanta à vista de todos e, com voz mais sonora e forte, afirma:
— Por justo juízo de Deus, fui JULGADO.
E, logo a seguir, cai sobre o leito.
Numa atmosfera de terror generalizado, os médicos analisaram o cadáver, atestando cuidadosamente a inexistência do menor sopro de vida, inclusive por estarem rígidas as articulações. Não houve clima psicológico para retornarem às orações oficiais, que foram transferidas para o dia seguinte.
A cidade de Paris ferveu de comentários e discussões sobre o caso: uns defendiam a tese de que aquele homem havia sido condenado, e era assim indigno das bênçãos da Igreja; outros afirmavam que todos nós seremos ACUSADOS, e depois, JULGADOS.
O próprio Bispo oficiante foi partidário desta opinião e por isso reiniciou, no dia seguinte, a mesma cerimônia, desta vez ainda mais concorrida, com um público pervadido de extrema apreensão e curiosidade.
Na mesma passagem da quarta leitura de Matinas, o Bispo proclamou:
“Responde-me...” Em meio ao grande suspense, o falecido Raymond Diocrés se levantou e, numa voz aterradora, exclamou:
— Por justo juízo de Deus fui CONDENADO!
E tornou a cair imóvel.
Não havia dúvida, estava desfeito o enorme equívoco sobre sua imerecida reputação e falsa glória. Por ordem das autoridades eclesiásticas, o corpo foi despojado de suas insígnias e lançado em vala comum.
O episódio marcou profundamente aqueles anos e foi esta a razão pela qual Bruno e seus primeiros quatro companheiros, testemunhas oculares do fato, resolveram abandonar o mundo e abraçar a vida religiosa, resultando daí a fundação da Ordem dos Cartuxos.
Dies irae, dies illa...
Por esse ilustrativo acontecimento podemos fazer idéia de quão numerosos serão os equívocos sobre a realidade das consciências e dos juízos de Deus. E só por essa narração já se entenderia melhor a necessidade de um juízo universal.
Em sua sóbria mas eloqüente majestade, a Santa Igreja canta os aspectos terríveis daquele dia, na Seqüência da Missa de “Réquiem”: o “Dies Irae”. Mozart dizia estar disposto a trocar a honra que todas as suas obras lhe granjearam, pela autoria desse único moteto gregoriano.
“O dia da ira, aquele que reduzirá tudo a cinzas... Que terror, quando o Juiz vier para tudo examinar rigorosamente!... Será apresentado o livro que contém tudo pelo qual será julgado o mundo. Quando o Juiz estiver sentado, tudo quanto está oculto será revelado, nada restará impune ...”
Naquele dia, saber-se-á a razão das perseguições, das heresias, dos martírios, das calúnias, das invejas, etc. Será o dia do triunfo da justiça divina, cada um receberá à vista de todos aquilo que merece. Porém, não será um dia marcado por vinte e quatro horas, mas sim eterno. Pelos séculos dos séculos, sem fim, as minúcias do comportamento de cada um dos seres humanos ficará na lembrança dos santos e dos condenados.
Assim, não devemos descuidar de nossa salvação eterna, tal qual nos recomendam doutores e espiritualistas, como Monsabré, de quem encontramos esta cogente advertência: “Comparecereis muito em breve diante do trono de vosso grande Juiz. Ouvireis sair de sua boca uma bênção ou uma maldição? Eu o ignoro. Tudo quanto posso dizer é que necessitais tomar vossas garantias seguindo este conselho do Apóstolo: ‘Com temor e tremor trabalhai por vossa salvação’ (Fil 2,12)”

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