Comentários ao Evangelho Solenidade da
Ascensão do Senhor – Ano A
Naquele tempo, 16 os Onze discípulos foram
para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado. 17 Quando viram Jesus,
prostraram-se diante d’Ele. Ainda assim alguns duvidaram. 18 Então Jesus
aproximou-Se e falou: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e sobre a terra. 19
Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo, 20 e ensinando-os a observar tudo o que vos
ordenei! Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 16-20).
I – A hora da
partida de Jesus Cristo
A Igreja celebra na Quinta-feira da 6ª
Semana do Tempo Pascal a Solenidade da Ascensão do Senhor, transferida no
Brasil para o 7º Domingo da Páscoa, por razões pastorais. Houve épocas em que
esta festividade era realizada com grande brilho. Assim como se comemora à
meia-noite do dia 24 de dezembro o nascimento do Menino Jesus e às três horas
da tarde da Sexta-Feira Santa a sua Morte, a Ascensão o era ao meio-dia. Na
Idade Média costumava-se realizar uma procissão para representar o trajeto
feito por Nosso Senhor, acompanhado pelos Apóstolos e discípulos, de Jerusalém
ao Monte das Oliveiras, de onde Ele ascendeu para junto do Pai (cf. At 1, 12).
Durante a Missa, o diácono apagava o Círio Pascal logo após o cântico do
Evangelho, simbolizando o último episódio da existência visível do Redentor na
terra.
Hoje, ao contemplarmos sua subida aos Céus,
tenhamos presente que Jesus não nos abandonou, mas, pelo contrário, continua
conosco, conforme a promessa feita no Evangelho: “Eis que estarei convosco
todos os dias, até o fim do mundo”. E nós, enquanto filhos, também desejamos
permanecer com Ele, uma vez que veio a este mundo trazer-nos a participação na
sua natureza divina.
II – Quando será
restaurado o Reino?
Ao longo de seus escritos, os Evangelistas
procuram expor os acontecimentos centrais da vida terrena de Nosso Senhor, na
maior parte da qual Ele assumiu um corpo padecente como o nosso. No entanto,
com exceção de São Lucas, quase nada dizem a respeito da Ascensão (cf. Mc 16,
19), evento de suma importância. Apenas no terceiro Evangelho encontramos
alguns versículos dedicados a este mistério (cf. Lc 24, 50-51), além de um
relato mais pormenorizado, no início dos Atos dos Apóstolos, em que, dando
sequência a seu primeiro livro, o mesmo autor descreve a ação mística de Jesus
após sua partida para os Céus, ou seja, o desenvolvimento e expansão da Igreja
em seu nascedouro.
Por tal razão, e por ter sido o término do
Evangelho de São Mateus objeto de outros comentários,1 será ele analisado à luz
da narrativa da Ascensão feita por São Lucas – primeira leitura desta
Solenidade (At 1, 1-11) –, já que o texto evangélico não se refere propriamente
ao fato histórico da despedida de Nosso Senhor, mas sim a uma de suas aparições
ocorrida durante os quarenta dias em que, ressuscitado, conviveu com os
Apóstolos e lhes transmitiu seus últimos ensinamentos.
Errônea concepção
a respeito do Messias
Naquele tempo, 16 os Onze discípulos foram
para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado. 17 Quando viram Jesus,
prostraram-se diante d’Ele. Ainda assim alguns duvidaram.
Várias destas manifestações de Nosso Senhor
nesse período deram-se na Galileia. Ao escolher uma região afastada de
Jerusalém tornava-se patente que o verdadeiro culto a Deus não se prendia mais
ao Templo, mas à sua Pessoa Divina. O primeiro versículo do Evangelho recorda
também sua predileção pelos lugares elevados, tantas vezes demonstrada durante
sua vida pública. Alguns acreditam que este episódio tenha ocorrido no Tabor,
outros em um dos montes situados nas proximidades do Lago de Genesaré.2 O certo
é que o local foi determinado pelo próprio Jesus por razões sapienciais, como
comenta São Rábano Mauro: “O Senhor apareceu-lhes num monte para dar a entender
que o Corpo que havia tomado da terra ao nascer – como sucede a todos os homens
– já estava elevado acima de todas as coisas terrenas quando ressuscitou, e
ensinava aos fiéis que, se desejassem ver como Ele a magnificência da
ressurreição, deviam esforçar-se por passar das mais baixas paixões às mais elevadas
aspirações”.3
Ao reconhecerem Jesus, os Onze prostraram-se
diante d’Ele para adorá-Lo. Bem podemos cogitar que nesses encontros durante
sua permanência visível entre nós antes de subir aos Céus, os Apóstolos sentiam
no fundo da alma que algo grandioso estava para acontecer. Entretanto, apesar
de O haverem acompanhado em sua pregação, de terem passado pelo terrível trauma
de vê-Lo preso, flagelado, coroado de espinhos, morto na Cruz e sepultado,
tendo inclusive constatado o milagre da Ressurreição e presenciado suas
aparições já em corpo glorioso ao longo de quarenta dias, não souberam
interpretar bem aquela promessa imponderável feita pela graça em seu interior,
porque lhes faltava a descida do Espírito Santo. Deduziram eles,
equivocadamente, ter chegado a hora do triunfo social de Cristo.
Conforme crença comum entre os judeus,
aguardavam eles a restauração da soberania política de Israel, levada a uma
nova plenitude em que, finalmente, o povo eleito estivesse acima de todas as
nações, sem precisar pagar impostos aos romanos. E imaginavam Jesus como o rei
ideal segundo essa perspectiva. Em consequência, a divulgação do Evangelho,
como Ele havia recomendado que fizessem, seria feita ao mesmo tempo com a
palavra nos lábios, a espada na mão direita e uma bolsa na esquerda.
Embora eles, enquanto membros do povo judeu,
estivessem já por vários anos sofrendo a perseguição e o ostracismo, não
entendiam o motivo pelo qual Deus permitia esses infortúnios, o que na verdade
visava instruí-los a não depositar a esperança no poder, na política ou no
dinheiro, e sim no sobrenatural, na Religião verdadeira, na Redenção operada
por Cristo e na Revelação feita por Ele. Surpreende-nos comprovar que essa
errônea concepção tenha perdurado por tanto tempo entre os Apóstolos, mas a
realidade é que nas aparições de Nosso Senhor ressuscitado, e até no momento da
Ascensão, eles ainda pensavam numa glória humana, a ponto de chegarem a
indagar: “Senhor, é agora que vais restaurar o reino em Israel?” (At 1, 6). A
explicação mais corrente dos exegetas a essa passagem centra-se na mentalidade
deformada dos que a formularam, e poucos se detêm na significativa resposta do
Divino Mestre.
Cristo reina por
meio da Igreja
Com efeito, é de se notar como, nessa
ocasião, Ele não contradiz os discípulos, não refuta de forma violenta seu
anseio de um poderio ostensivo na face da terra. Ao invés disso, lhes diz: “Não
vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria
autoridade” (At 1, 7). É uma clara alusão a que algo na linha do que desejavam
de fato se realizaria, mas no tempo estabelecido pela vontade divina. Momentos,
portanto, em que a onipotência de Deus tem de se manifestar com todo o seu
vigor na obra d’Ele chamada Santa Igreja Católica Apostólica Romana,
verificando-se os efeitos do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo,
de valor infinito, derramado no Calvário. Haverá então um só rebanho, sob a
égide de um só pastor, e a autoridade de Cristo se exercerá de modo refulgente,
inclusive com reflexos na vida social.
Essa mesma perspectiva, descortinada pelo
Senhor no dia de sua Ascensão, nós a encontramos nos subsequentes versículos
deste Evangelho:
18 Então Jesus aproximou-Se e falou: “Toda
a autoridade Me foi dada no Céu e sobre a terra”.
Tal autoridade “no Céu e sobre a terra”
Nosso Senhor a possui desde todos os séculos, enquanto Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade, Filho Unigênito de Deus. Porém, enquanto Homem Ele a
recebeu por direito de conquista através do sacrifício de sua Paixão e Morte,
como observa São Jerônimo: “Foi dado o poder Àquele que pouco antes havia sido
crucificado, sepultado num túmulo, que jazia morto e depois ressuscitou.
Foi-Lhe dado o poder no Céu e na terra para que o que antes reinava no Céu
agora reine em toda a terra, por meio da fé dos que creem”.4
Muitas vezes, contudo, a Igreja enfrenta
terríveis tribulações nas quais seus inimigos empreendem todos os esforços para
arrebatar a sua autoridade. A análise da História nos leva a comprovar que Deus
permite, em certas circunstâncias, até mesmo um triunfo aparente do mal. E
quando este está prestes a atingir o seu auge e a ponto de cravar o estandarte
da vitória absoluta, Deus reverte o curso dos acontecimentos. Assim, dado que
nunca houve uma crise tão grave como a de nossos dias, em que o progresso do
mal se encontra num estágio avançado e vislumbra seu êxito total, é necessário
que, em determinado momento, este mesmo mal seja acuado, aterrorizado,
humilhado e jugulado, e a Igreja brilhe com novo fulgor. Esta vitória, como
acima dissemos, não se limita à santidade no campo das almas, que ela sempre
suscitou desde que foi fundada, mas abarca inclusive a sacralização da ordem
temporal.
Ensina São Paulo que a própria criação, com
a “esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, […] geme e
sofre como que dores de parto” (Rm 8, 21-22), pois, se foi “sujeita à vaidade”
(Rm 8, 20), também deve ser beneficiada pela Redenção. Da mesma maneira,
pode-se afirmar que a sociedade civil, a qual está na base da espiritual e lhe
oferece elementos, foi fortemente atingida pelo pecado e precisa receber neste
mundo – pois ela não passará para a eternidade – a sua glória, pelos méritos do
Salvador. A assembleia celeste, todavia, formada pelos Santos, é perpétua e seu
prêmio consiste no convívio com Deus, na visão beatífica.
A nós, como outrora aos discípulos, não nos
“cabe saber os tempos e os momentos”, mas temos certeza de que essa
glorificação virá, pois Nosso Senhor possui pleno domínio sobre todas as coisas
e, por mais que os homens queiram impedir o cumprimento de seus desígnios, Ele
os realizará quando for de sua vontade.
A necessidade de
evangelizar
19 “Portanto, ide e fazei discípulos meus
todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, 20a
e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!”
Abandonando o futuro nas mãos de Deus, o que
deveriam fazer os Apóstolos? Pôr em prática a recomendação de Jesus neste
versículo, sem pensar em qualquer restauração segundo seus critérios
deturpados, preparando-se para serem testemunhas da Boa-nova em todo o orbe,
sem contar com qualquer recurso militar, político ou financeiro, e sim com a
força do Espírito Santo, como Ele lhes garantiu antes de deixá-los: “descerá
sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na
Samaria, e até os confins da terra” (At 1, 8). Com este irresistível poder eles
começariam a divulgar os ensinamentos do Divino Mestre e o Reino de Deus se
implantaria de forma impalpável, muito mais através da fé do que pelos meios
concretos, tal como o grão de mostarda que, ao ser semeado, vai se
desenvolvendo quase imperceptivelmente até alcançar vigorosa expansão (cf. Mt
13, 31-32).
Confusão entre a
primeira e a segunda vinda do Messias
20b “Eis que estarei convosco todos os
dias, até o fim do mundo”.
Jesus em breve partiria para junto do Pai.
Antes, porém, faz a promessa de permanecer com os homens até a consumação dos
tempos. São João Crisóstomo ressalta que Ele aqui Se refere a todos os membros
da Igreja, pois “não disse que estaria somente com eles, mas também com todos
os que creriam depois deles. […] O Senhor fala com seus fiéis como a um só
Corpo”.5 Além disso, comenta ainda o Santo que Ele chama a atenção dos
discípulos para “o fim do mundo, a fim de atraí-los mais e para que não olhem
apenas para as dificuldades presentes, senão também para os bens vindouros, que
não têm termo”.6
Os Apóstolos, evidentemente, não podiam
acompanhá-Lo na Ascensão, pois, quem tem forças para subir ao Céu, “senão
aquele que desceu do Céu” (Jo 3, 13)? Entretanto, quando Ele desapareceu
envolto em uma nuvem, aproximaram-se dois Anjos vestidos de branco e
perguntaram: “Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o
Céu? Esse Jesus que vos foi levado para o Céu virá do mesmo modo como O vistes
partir para o Céu” (At 1, 11).
As palavras dos mensageiros celestes são
muito expressivas, pois vinham confirmar as promessas de Jesus, abrindo a
compreensão dos Onze para começarem a entender que a glória e o aparato
desejado para o Messias, e para a instauração do Reino de Deus na terra, não
correspondiam aos planos divinos naquela circunstância, e estavam reservados
para o seu regresso. Na realidade, eles confundiam a segunda vinda de Nosso
Senhor Jesus Cristo com a primeira, julgando que esta deveria ser pomposa,
tonitruante, cheia de magnificência, brilho e esplendor. Não obstante, Ele
nasce numa gruta, abraça a pobreza a ponto de não ter onde repousar a cabeça
(cf. Mt 8, 20), e até os milagres que opera têm um caráter muito sereno, sem
grandes ribombos, pois Ele não queria chamar demasiada atenção e até proibia,
às vezes, que se fizesse propaganda deles (cf. Mt 12, 15-16; Mc 1, 43-44). Só
na segunda vinda – em que “virá do mesmo modo como O vistes partir para o Céu”
– Se manifestará com imponência e majestade.
Com efeito, então o Rei dos reis descerá
seguido pelo cortejo dos exércitos celestes, montados em cavalos brancos e
vestidos de linho de brancura resplandecente (cf. Ap 19, 14). O Doutor Angélico
defende a tese de que, antes de chegar à terra, a meia altura, o Salvador será
recebido por uma plêiade de cojuízes que irão a seu encontro, como costumam
fazer as autoridades de um lugar quando acolhem outra de maior dignidade. São
eles varões perfeitos, escolhidos para julgar a humanidade junto com Ele, pois
“neles estão contidos os decretos da divina justiça”.7 Só depois, em meio a uma
apoteose, será dado início ao Juízo Final, que separará o trigo do joio (cf. Mt
13, 30), os da direita dos da esquerda (cf. Mt 25, 33), e se concluirá com a
subida dos bons para o Céu, na companhia do Filho de Deus, enquanto os maus
serão precipitados nas trevas.
III – A Ascensão
do Senhor, penhor da nossa
Aquele que hoje Se eleva aos Céus é o mesmo
que foi humilhado, açoitado, coroado de espinhos, crucificado entre dois
ladrões e depositado num sepulcro. Seu Corpo estava chagado da cabeça aos pés,
tal como a respeito d’Ele profetizara o salmista: “Sou um verme, não sou homem,
[…] poderia contar todos os meus ossos” (Sl 21, 7.18); mas, antes de sua carne
começar a sofrer a corrupção (cf. Sl 15, 10), ressuscitou-Se a Si próprio com
seu poder divino,8 passou quarenta dias na terra e voltou para o Pai.
São Tomás se pergunta que força O teria
feito subir, e explica que, sendo Ele a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade,
nesse instante exerceu sua onipotência, pelo que a causa primeira foi sua
virtude divina. Baseando-se também em Santo Agostinho, acrescenta que, no
momento da Ressurreição, a glória da Alma de Cristo redundou na glorificação do
Corpo, com seus atributos próprios, dentre os quais a agilidade, que confere a
capacidade de se movimentar segundo o pensamento e o desejo, de maneira que
onde está o espírito, lá esteja também o corpo. Ora, não convinha que Ele
permanecesse na terra, uma vez que ela é um local de decomposição, e era
preciso que seu Corpo imortal estivesse no lugar apropriado, isto é, o Céu
Empíreo. Assim, conclui o Santo Doutor, a segunda causa de sua Ascensão, foi
“pelo poder da Alma glorificada que movia o Corpo como queria”.9
Uma promessa
feita a toda a humanidade
Nosso Senhor Jesus Cristo alçou-Se por seu
próprio poder, e teve a delicadeza de deslocar-Se lentamente, ascendendo não à
velocidade do pensamento, mas conforme a admiração dos que presenciavam o
milagre. Foi-Se distanciando com calma, sorrindo e abençoando, até Se tornar um
ponto cada vez menor e desaparecer. À vista da exaltação do Mestre, todos os
circunstantes transbordaram de alegria e “voltaram para Jerusalém com grande
júbilo” (Lc 24, 52).
Também para nós a Ascensão é motivo de gozo,
de esperança e de fé. Por quê? Usemos de um exemplo para facilitar a
compreensão deste mistério e sua implicação na espiritualidade dos fiéis. Seria
impossível, e até monstruoso, imaginar que no dia de Páscoa só a Cabeça do
Redentor voltasse à vida, enquanto seu Corpo sagrado jazesse chagado no túmulo.
Ressuscitando a Cabeça, também todo o Corpo tinha de o fazer! Pois bem, a
Igreja é o Corpo Místico de Cristo; e Ele, ressuscitando como Cabeça da Igreja,
dá aos batizados o penhor da ressurreição, pois “cada um, de sua parte, é um
dos seus membros” (I Cor 12, 27). O mesmo se pode dizer da Ascensão: subindo
aos Céus em Corpo e Alma, o Redentor concede a garantia de nos conduzir à
eternidade da mesma forma, pois “Ele é nossa Cabeça, mister se faz que os
membros vão para onde ela se dirigiu”.10 A este respeito comenta São João
Crisóstomo: “Observe-se que o Senhor nos faz ver suas promessas. Havia
prometido ressuscitar os corpos; ressuscitou-Se a Si mesmo dos mortos e
confirmou seus discípulos nesta fé, durante quarenta dias. Prometeu que seremos
arrebatados ao Céu, e também o provou por meio das obras”.11
Quando o Filho de Deus assumiu nossa carne,
quis Ele viver entre nós para dar o exemplo da plenitude e da perfeição em
todas as virtudes, atos e gestos que devemos praticar, inclusive na nossa
futura partida para o Céu, como esperamos. A Ascensão do Senhor é, pois, para
nós, um ponto de imitação. Como será, então, a nossa?
De Deus viemos, a
Ele devemos retornar
No Evangelho de São João encontramos as
palavras do Divino Mestre que sintetizam a trajetória de sua vida terrena, e
devem também ser o resumo da nossa: “Saí do Pai e vim ao mundo. Agora deixo o
mundo e volto para junto do Pai” (Jo 16, 28). Elas podem se aplicar com toda
razão aos homens, pois nenhum de nós criou a própria alma. Apenas o corpo foi
formado pelo concurso dos pais – e mesmo estes não o engendrariam sem a força
de Deus –, mas a alma provém d’Ele, que a cria no instante da concepção para
que anime o corpo. Se fomos constituídos por Deus, é preciso que nosso
desenvolvimento se faça com vistas a este retorno a Ele, como se deu com Jesus.
Eis a extraordinária dignidade de nossa origem e de nossa finalidade: Deus!
No entanto, para atingirmos este fim é
indispensável fazer como Nosso Senhor, que viveu com a atenção voltada para o
Pai, conforme testemunhou em seu discurso de despedida: “Eu Te glorifiquei na
terra” (Jo 17, 4a). Nisto consiste a missão, o dever moral de cada homem. E não
pensemos que tal meta se contrapõe às nossas obrigações no estado familiar ou
em qualquer outro, pois se as cumprimos por amor a Deus, em função d’Ele e para
Ele, realizamos o nosso chamado e poderemos dizer: “Terminei a obra que Me
deste para fazer” (Jo 17, 4b). Com a Encarnação, Jesus revelou à humanidade o
Deus Uno e Trino, Pai, Filho – que é Ele – e Espírito Santo, e mostrou que a
única Religião verdadeira, o único caminho que nos fortalece e nos dá paz é
este que Ele trouxe, com o perdão dos pecados, a instituição dos Sacramentos e
a felicidade do estado de graça. Por isso pôde afirmar: “Manifestei o teu nome
aos homens” (Jo 17, 6). Quanto a nós, devemos continuar a sua obra e, para
isso, contar com a força do Espírito Santo que nos é prometida. Se estivermos
compenetrados de que somos membros de seu Corpo Místico, chamados a participar
da herança de sua glória, e seguirmos a via por Ele aberta, nossos corpos
ressuscitarão gloriosos no último dia.
Glorificação da
natureza humana
A Ascensão de Cristo é o preâmbulo do que
nos aguarda, como Ele anunciou: “Vou preparar-vos um lugar” (Jo 14, 2). Ao
subir, abre para nós as portas do Céu e, ao cântico dos Anjos, Se estabelece em
seu trono ao lado do Pai, representando toda a humanidade, como belamente entoamos
nos versos do hino de Laudes desta Solenidade: “Demos graças a tal defensor /
que nos salva, que vida nos deu / e consigo no Céu faz sentar-se / nosso corpo
no trono de Deus”.12 De fato, no momento em que a humanidade santíssima de
Jesus Se assenta no “trono da Majestade divina nos Céus” (Hb 8, 1) e recebe a
glória devida, todo o gênero humano é também elevado.
Sabemos, todavia, que só no Juízo Final
teremos essa glória, pois antes disso todos morreremos e o corpo não será
poupado da decomposição, servindo de alimento aos vermes até se desfazer.
Enquanto não o recuperarmos a alma estará, sob certo aspecto, em estado de
violência, como explica o Pe. Royo Marín: “Se é contrário à natureza qualquer
mutilação do corpo humano, […] é evidente que muito mais contrário à natureza
humana é que o corpo inteiro se destaque e se separe de sua alma”.13 Contudo, o
período que permeia entre o instante em que fechamos os olhos para esta vida e
o da ressurreição no último dia é ínfimo se comparado à eternidade. No fim do
mundo comprovaremos o extraordinário poder de Deus pois, assim como criou nossa
alma do nada, Ele reconstituirá os corpos a partir do que deles ainda restar;
e, se tivermos morrido em graça, os restituirá em estado glorioso, para
subirmos ao Céu tal como Nosso Senhor Jesus Cristo em sua Ascensão, comemorada
liturgicamente nesta Solenidade.
Ele intercede por
nós junto ao Pai
À vista disso, a Oração do Dia adquire
especial significado ao recordar que a Ascensão do Senhor “já é a nossa
vitória”.14 E prossegue: “Fazei-nos exultar de alegria e fervorosa ação de
graças, pois, membros de seu Corpo, somos chamados na esperança a participar da
sua glória”.15 Ele está sentado no trono de Deus, à direita do Pai, como
Intercessor, Mediador e Sacerdote, apresentando-Lhe sua humanidade! Sem dúvida,
basta-nos isto para obtermos tudo o que necessitamos. E Ele não só oferece sua
humanidade, como o faz depois de ter passado por todas as vicissitudes de um
corpo padecente, pela Paixão e pela Morte. O Pe. Monsabré, célebre pregador
dominicano, tece algumas considerações sobre este tema: “Lá, Vós concluís a
obra de nossa salvação. Lá, Vós fazeis um apelo à nossa fé, à nossa esperança,
ao nosso amor, às nossas adorações; lá, precursor diligente e devotado, nos
preparais um lugar, mostrando-nos a via que seguistes e as gerações
bem-aventuradas que haveis livrado do poder de satanás. Lá, Pontífice
misericordioso, Vós mostrais as vossas chagas e aplicais, em nosso favor, os
sofrimentos e os méritos de vossa Paixão e de vossa Morte; de lá, derramais
sobre nós todos os vossos dons. De lá, enfim, Vós vireis um dia, lei
subsistente e viva, Sabedoria Encarnada, Senhor de toda criatura, exemplar de
toda vida, plenitude de toda graça, de lá vireis, revestido de grande poder e
de grande majestade, para julgar os vivos e os mortos”.16
Deste modo, temos ao lado do Pai alguém que
participa de nossa natureza, de nossa carne e de nossos ossos a advogar por
nós, acompanhado por Maria Santíssima, que sempre vela com incansável
maternalidade pelos homens.
Peçamos a Eles a graça de não serem tisnadas
nossas almas pelas ilusões que levaram os Apóstolos a procurarem uma felicidade
meramente humana. Esteja nossa atenção sempre voltada para as coisas do alto,
buscando restituir a Deus tudo quanto d’Ele recebemos ao longo da vida. E assim
como estamos neste mundo para imitar Nosso Senhor, que Se encarnou para ser o
Modelo Supremo, assim também devemos nós ser exemplo para os outros. Eis a
verdadeira perspectiva neste estado de prova: manter sempre a esperança de que,
em determinado momento, estaremos em corpo e alma nos Céus, num eterno e
sublime convívio com e sublime convívio com Deus!
1 Cf.
CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. De rejeitado a onipotente. In: Arautos do
Evangelho. São Paulo. N.18 (Jun., 2003); p.6-11; Comentário ao Evangelho da
Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B, no Volume III da coleção O inédito
sobre os Evangelhos.
2 Cf.
TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V,
p.605.
3 SÃO
RÁBANO MAURO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Matthæum, c.XXVIII, v.16-20.
4 SÃO
JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.IV (22,41-28,20), c.28, n.64. In: Obras
Completas. Comentario a Mateo y otros escritos. Madrid: BAC, 2002, v.II, p.419.
5 SÃO JOÃO
CRISÓSTOMO. Homilía XC, n.2. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San
Mateo (46-90). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.II, p.729.
6 Idem,
ibidem.
7 SÃO
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppl., q.89, a.1.
8 Cf.
Idem, III, q.53, a.4.
9 Idem,
q.57, a.3.
10
Idem, a.6.
11 SÃO
JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XXIV,
v.50-53.
12
SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR. Hino de Laudes. In: COMISSÃO EPISCOPAL DE
TEXTOS LITÚRGICOS. Liturgia das Horas. Petrópolis: Ave-Maria; Paulinas; Paulus;
Vozes, 2000, v.II, p.830.
13 ROYO
MARÍN, OP, Antonio. Teología de la salvación. 4.ed. Madrid: BAC, 1997, p.174.
14
SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR. Oração do Dia. In: MISSAL ROMANO. Trad.
portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB
com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004,
p.313.
15
Idem, ibidem.
16
MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. Le
Triomphateur. In: Exposition du Dogme Catholique. Vie de Jésus-Christ. Carême
1880. 9.ed. Paris: P. Lethielleux, 1903, v.VIII, p.327-329.
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